Meninas e Mulheres na Ciência e Tecnologia

Publicado primeiramente em Bitniks.

“Sempre amei compartilhar conhecimento, acredito na transformação do mundo através da educação livre de muros.” (Caroline Dantas)

A tecnologia tem diversas facetas. Pode ser destruidora ou potência na sociedade, a exemplo da minha própria trajetória compartilhada lá na nossa primeira conversa. Notadamente há desigualdades sociais que são reproduzidas no meio tecnológico, Canclini vai chamar isso de techno-apartheid, ou seja, quando grupos minoritários como negros, indígenas e mulheres, entre outros, têm dificuldade de acesso e uso de ferramentas tecnológicas.

Especificamente nos estudos sobre meninas e mulheres na tecnologia, a professora Cecilia Castaño Collado vai tratar das brechas tecnológicas de gênero. A pesquisadora baseia seus estudos sobre o tema em três tópicos principais: o acesso a equipamentos tecnológicos e internet; o uso das ferramentas digitais e internet; e a produção das tecnologias. Ou seja, uma visão ampla de análise que vai desde o necessário conhecimento para utilização das tecnologias, da estrutura e da própria capacidade de criar tecnologia. Obviamente que as brechas tecnológicas de gênero também perpassam por questões relacionadas à raça, classe e território, por exemplo, e tudo somado dificulta o acesso e a o desenvolvimento de mulheres na área da ciência e tecnologia.

O levantamento da PretaLab sobre a inserção de mulheres negras na inovação e tecnologia aponta que grande parte das participantes da pesquisa tiveram contato com a tecnologia primeiro por meios informais, como internet, fóruns, amigos e cursos livres; sobre motivação no campo, 29,1% mencionam o potencial de inovação, 14,6% as possibilidades de transformação social e 13,9% o alcance; 1 em cada 5 participantes do estudo é mãe; todas as entrevistadas demonstraram interesse em compartilhar aprendizados e experiências sobre a área de tecnologia com outras meninas e mulheres.

Para mais análises do levantamento da PretaLab, sugiro ler esse artigo, mas me chama a atenção o potencial multiplicador de conhecimento e experiência mencionado no último item acima. No relatório, especificamente sobre meninas e mulheres negras na tecnologia, há diversos projetos mencionados que têm como objetivo ir além dos muros institucionais (ou se apropriar deles) do saber e propagar informações sistematizadas, experiências e outros pontos de vista, como a Criola, Blogueiras Negras, Pretas Hackers, Minas Programam, Info Preta, entre outros. Há ainda outras iniciativas como Programaria, Maria Lab, Django Girls e PyLadies. Todas os projetos comprometidos em diminuir as disparidades decorrentes das brechas tecnológicas de gênero e suas demais interseccionalidades.

“Ah, mas isso não seria segregar ainda mais o mercado, os espaços de aprendizado e a sociedade?”. Definitivamente não. E só você ainda pensa assim em pleno 2021, volte algumas casas e recomece seu processo de reflexão. Bem como apontado ali no relatório da PretaLab, grande parte das entrevistadas buscam a capacidade de inovação e as possibilidades de transformação social. Os esforços coletivos, em geral, tentam “apenas” diminuir o techno-apartheid e as brechas tecnológicas, o que me parece bom para a sociedade como um todo e assim promover potencialidades a partir da tecnologia, e não destruição.

Que sejamos capazes de fortalecer os trabalhos das iniciativas já existentes ou criar novos, que possamos ser agentes de reapropriação de espaços institucionais e abrir caminhos para novas gerações de meninas e mulheres na ciência e tecnologia.

Perspectivas tecnológicas do Sul Global. Mas qual Sul?

Publicado primeiramente em Bitniks.

Nos últimos anos tem se popularizado eventos, disciplinas, cursos e publicações na área da tecnologia que evocam as “perspectivas do Sul Global” baseados em promessas de um olhar decolonial (ou descolonial ou pós-colonial), porém quase sempre são as mesmas referências, os mesmos nomes e as mesmas perspectivas hegemônicas de sempre.

Inclusive a própria falta de consenso e o infinito debate em relação ao conceito e aplicação dos termos “decolonial”, “descolonial” ou “pós-colonial” denuncia a falta de foco no que realmente importa. Invés de horas a fio debatendo o conceito, que tal questionar as práticas acadêmicas que seguem eurocentradas, machistas, elitistas e fincadas no sistema da branquitude?

Quando há uma singela demonstração de interseccionalidade nos eventos, disciplinas, cursos e publicações ainda prevalece a política do “único representante”. A única pessoa não-branca, a única mulher, a única pessoa LGBTQI+ e assim por diante. A homogeneização de grupos tão plurais é tão violenta quanto seu apagamento.

Permanecer com os mesmos olhares e pontos de vista em situações que provocam a reflexão sobre novos modos de sociedade leva à reflexão sobre a necessidade de questionar os representantes de sempre, pois foram esses olhares que nos trouxeram até aqui e até as nossas problemáticas contemporâneas.

A ciência e o conhecimento oriundo do continente africano quase nunca são lembrados nestas atividades do “Sul Global” que se pretendem decoloniais. Deste modo, aproveito a celebração do Dia da África (25/5) – data para recordar a luta por independência de países africanos – e este espaço para apresentar (ou relembrar) alguns pesquisadores da Ciência, Sociedade & Tecnologia que tem feito importantes contribuições para debates atuais.

Abeba Birhane (Étiópia): É doutoranda em ciências cognitivas no Complex Software Lab da University College Dublin na School of Computer Science. Sua pesquisa perpassa as relações entre tecnologias emergentes e os impactos sociais, políticos e econômicos na sociedade. Abeba também dá aulas sobre Pensamento Crítico e Ética em Dados, Inteligência Artificial para ciência de dados, Introdução à Ética e Pensamento Crítico. Entre suas principais publicações está o artigo Algorithmic colonization of Africa.

Artwell Nhemachena (Namíbia): É Doutor em Antropologia Social atua em áreas como Estudos Sociológicos e Antropológicos de Ciência e Tecnologia, Governança e Democracia, Transformações e Decoloniedades, entre outros. No livro Decolonising Science, Technology, Engineering and Mathematics (STEM) in an Age of Technocolonialism: Recentring African Indigenous Knowledge and Belief Systems do qual o professor é co-organizador, discute-se as noções de colonialidade da ignorância e geopolítica da ignorância como central para a colonialidade e colonização.

Ayodele James Akinola (Nigéria): Pesquisa, principalmente, em torno das Humanidades Digitais e a aplicação das Tecnologias de Informação e Comunicação para fins educacionais. No artigo Pragmatics of crisis-motivated humour in computer mediated platforms in Nigeria discute como o humor é mediado pela tecnologia e os impactos em aspectos sociopolíticos na Nigéria.

Edda Tandi Lwoga (Tanzania): É Professora Associada em Ciência da Informação no College of Business Education (CBE) na Tanzânia. Ela também é o Ponto Focal do País (CFP) do Acesso Digital à Pesquisa – Banco de Tecnologia das Nações Unidas na Tanzânia. Suas pesquisas têm como foco sistemas de informação, gestão do conhecimento, acesso aberto e dados abertos, TIC para o desenvolvimento, TIC e empoderamento de jovens e mulheres, ciência da informação e e-learning. Entre seus artigos mais citados está o  New technologies for teaching and learning: Challenges for higher learning institutions in developing countries.

Francis B. Nyamnjoh (Camarões): Nascido em Camarões, atualmente é Professor nas áreas de sociologia, antropologia e estudos de comunicação da University of Cape Town. Suas pesquisas tratam de temas como globalização, mídia, identidade, mobilidade e uma de suas principais obras é o livro #RhodesMustFall: Nibbling at resilient colonialism in South Africa que discute problemas sociais existentes na África do Sul pós-apartheid e tem como base de análise o movimento Rhodes Must Fall liderado por jovens universitários.

Gado Alzouma (Nigéria): Professor de Sociologia e Antropologia na American University da Nigéria. Suas pesquisas são focadas em informação, comunicação e tecnologia para o desenvolvimento social. Em seu artigo Myths of Digital Technology in Africa: Leapfrogging Development? analisa criticamente as promessas de uma sociedadde tecnocentrista em torno do contexto social da África.

Rediet Abebe (Etiópia): É cientista da computação, atua especialmente com algoritmos e inteligência artificial e seus impactos sociais e raciais. Atualmente é Junior Fellow na Harvard Society of Fellows e Professora Assistente em Ciência da Computação na University of California. É co-organizadora do Mechanism Design for Social Good  e co-fondudadora do Black in AI. Um dos seus artigos mais citados é o Using search queries to understand health information needs in africa.

Sabelo J Ndlovu-Gatsheni (Zimbabwe): Professor especialista em Epistemologias do Sul Global com ênfase em África na University of Bayreuth, na Alemanha. Sabelo é um importante teórico descolonial com diversas publicações, dentre as quais The primacy of knowledge in the making of shifting modern global imaginaries, Coloniality of power in postcolonial Africa: Myths of Decolonization, The decolonial Mandela: Peace, justice and the politics of life, entre outros.

Sarah Chiumbu (África do Sul): Professora associada na Escola de Comunicação da Universidade de Joanesburgo, seus estudos são focados em mídia, democracia e cidadania, novas mídias, estudos de políticas, movimentos sociais, pensamento político africano, teorias descoloniais e pós-coloniais. Seu artigo mais referenciado, o Exploring mobile phone practices in social movements in South Africa–the Western Cape Anti-Eviction Campaign, trata do conjunto de novas práticas dos movimentos sociais a partir da popularização dos aparelhos celulares na África do Sul.

Tanja Bosch (África do Sul): Professora Associada de Estudos e Produção de Mídia na Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul. Recentemente publicou o livro Social Media and Everyday Life in South Africa onde investiga como as plataformas de mídias sociais e demais tecnologias se tornaram ferramentas cotidianas para os sul africanos.

            A diversidade nas visões de mundo, a troca de experiências a partir de contextos similares, o conhecimento de referências para além do cânone padrão só tendem a agregar no urgente debate sobre Ciência, Sociedade & Tecnologia. Então, que façamos uso estratégico desta poderosa ferramenta que nos conecta. E viva à África.

Impactos sociais e políticos das Deepfakes

Publicado primeiramente em Bitnik.

Talvez em algum momento de 2020 você tenha se deparado com o vídeo sobre “uma criatura circulando” pelas ruas de Fortaleza (CE), Ilhéus (BA), João Pessoa (PB) ou Teixeira de Freitas (BA). De primeira parece algo curioso, assustador, inédito e até engraçado, mas na verdade esse tipo de conteúdo, além de ser uma mentira alarmista, evidencia que a manipulação de imagens e vídeos se tornou uma prática muito perigosa e corriqueira.

As Deepfakes são fruto de uma técnica bastante utilizada e debatida, principalmente a respeito de suas consequências. Trata-se da tentativa de repetir comportamentos humanos com base em milhões de imagens alocadas em bancos de dados e produzidas em processos de aprendizado de máquina a partir de redes neurais. Assim, é possível, por exemplo, fazer com que o Justin Bieber venha passear no Brasil, que o Barack Obama ofenda o Trump, criar um looping de Marthin Luther King e até a criação de nudes falsos.

Há diversos problemas sérios em torno das Deepkakes, como:

  • a criação de “fatos” difíceis de distinguir se é realidade ou ficcional;
  • a popularização de aplicativos especializados em criar esse tipo de material e seus interesses comerciais;
  • esses aplicativos disponibilizam um variado banco de imagens de personalidades públicas, todavia muitas vezes sem a expressa autorização do uso de sua imagem;
  • inserção de pessoas em contextos adversos como em falácias, pornografia ou crimes;
  • espalhamento rápido e em larga escala por meio das plataformas de mídias sociais;
  • e impacto direto na conversação pública por meio de produção de desinformação.

O relatório Deepfakes and Cheap Fakes do Data & Society mostra como funcionam os processos de manipulação de vídeos e imagens usando aprendizado de máquina a partir de redes neurais e por ferramentas mais populares, as chamadas “cheap fakes” expressão que pode ser traduzida como “falsificação barata”.

No infográfico abaixo há alguns exemplos de manipulação audiovisual (AV) que ilustram como os deepfakes e essas “falsificações baratas” se diferenciam em sofisticação técnica. Da esquerda para a direita, a complexidade técnica diminui e a capacidade do público em geral de produzir falsificações aumenta. Por outro lado, o desenvolvimento de deepfakes é mais dependente computacionalmente e menos acessível.

1 Tela do relatório Deepfakes and Cheap Fakes

Outro estudo realizado pelos pesquisadores Shu Hu, Yuezun Li Siwei Lyu da Universidade de Buffalo (EUA) propõe uma ferramenta que pretende revelar se determinada imagem é uma deepfake através do reflexo nos olhos, o que eles chamam de “a inconsistência dos destaques especulares da córnea entre os dois olhos sintetizados”. Os pesquisadores desenvolveram uma base de dados para o estudo com fotos reais do Flicker-Faces-HQ e fotografias falsas do site This Person Does Not Exist (Esta Pessoa Não Existe), plataforma que disponibiliza fotos de pessoas criadas a partir da mesma lógica de aprendizado de máquina e redes neurais.

Segundo os pesquisadores, a partir da análise do espelhamento da córnea gerado somente em fotografias reais é possível observar as disparidades com imagens não reais, por exemplo formas geométricas e posição do reflexo de forma desigual. Ou seja, ao olhar para uma mesma cena os dois olhos vão transmitir de maneira similar o reflexo do ambiente, o que não ocorre em imagens produzidas por aprendizado de máquina. A ferramenta ainda está em fase de ajustes, como os próprios autores apontam no artigo contextos e condições das fotografias podem gerar falsos positivos, mas no artigo publicado em outubro de 2020 os testes chegaram a 94% de eficácia.    

2 Tela do Artigo Exposing GAN-generated Faces Using Inconsistent Corneal Specular Highlights

Como afirma Milton Santos em uma passagem de Técnica, Espaço, Tempo – Globalização e meio técnico-científico informacional: “Quando a crítica não é acompanhada pela análise, ela permite a mobilização, mas não a construção. A crítica deveria suceder à análise, mas o que acontece, na maioria dos casos, é que a necessidade de ser crítico opera como se o analítico fosse dispensável”.

Especialistas defendem que algumas respostas possíveis às deepfakes e outras técnicas de manipulação de conteúdo devem estar amparadas em regulação e normas, educação midiática, mudança de postura cultural da sociedade para lidar e evitar com esse tipo de conteúdo e responsabilização das plataformas. É preciso uma abordagem interdisciplinar, interseccional e aprofundada para compreender as causas, consequências e contenções dessa modalidade de distorção da realidade a partir do uso de tecnologias.  

Curadoria: 10 materiais para inspirar debates sobre ciência, tecnologia e sociedade

Durante todo esse ano conversamos por aqui sobre ciência, tecnologia e sociedade e passamos por temas como desinformação, discurso de ódio, deepfakes, perspectivas do Sul Global, gênero e tecnologia, conectividade e educação, tecnologia e impactos no clima, entre outros.

Já é um costume pessoal de fim do ano fazer uma lista de leituras que são imprescindíveis para basear discussões e escritas futuras. Deste modo, gostaria de compartilhar com vocês uma curadoria de 10 materiais, entre artigos, relatórios, pesquisas e entrevistas com publicação em 2021 e que tratam da temática ciência, tecnologia e sociedade que precisam entrar na sua lista de leitura.

  1. O relatório “Prioridades Antirracistas sobre Tecnologia e Sociedade” publicado pela Ação Educativa em parceria com a  Rede Negra em Tecnologia e Sociedade.

A partir da pergunta: quais são os consensos, dissensos, controvérsias e prioridades de pesquisadores negras e negros quando falam sobre justiça racial e tecnologias digitais de informação e comunicação? O relatório apresenta a percepção de diversos atores da sociedade a respeito tecnologia e justiça racial e a relação entre tecnologias digitais, raça e racismo no Brasil do ponto de vista de especialistas negras e negros do país.

Nana Miranda é Mestranda no Programa de Pós Graduação em Comunicaçã Social da PUC-Minas e neste artigo aborda diversos conceitos como dinâmicas e rastros digitais, produção de sentido, decisões maquínicas e racismo algorítmico.

O Data For Black Lives é uma organização norte-americana que conta diversos pesquisadores comprometidos em usar a ciência de dados para criar mudanças concretas e mensuráveis na vida da população negra. O website Data Capitalism: The fight begins here é um compilado de três artigos que explicam o que é o capitalismo de dados, sua relação com a escravidão e histórias de resistência.

O livro Afetando Tecnologias, Maquinando Inteligências é uma coletânea com as falas de diversos palestrantes que participaram do evento de nome homônimo. O pesquisador Sabelo Mhlambi trata da relação entre a tecnologia e tradições africanas, como a divinação Ifá. 

Um projeto também focado em utilização positiva dos dados, o material busca compreender como os movimentos feministas na África Subsaariana podem ser fortalecidos por meio da produção, compartilhamento e uso de dados sobre gênero, e como esse conhecimento pode ser traduzido em recomendações viáveis para empresas privadas de tecnologia.

Ana Carolina Costa dos Anjos é doutoranda no Programa de Pós Graduação em Sociologia, Universidade Federal de São Carlos e nessa entrevista, para o dossiê “Interfaces sociais da internet: reflexões sobre cultura, política e diferença” da Revista Askesis, conversa com os pesquisadores Larissa Pelúcio, Tarcízio Silva e Felipe Padilha discute digitalização e plataformização da sociedade, isolamento social, digitalização das relações sociais, entre outros temas.

Organizado por Bia Barbosa, Laura Tresca e Tanara Lauschner a coletânea traz textos com temas como participação das mulheres na governança de internet no Brasil, a violência contra as mulheres na internet, cancelamento, vazamento de nudes, mulheres e mercado de trabalho, entre outras abordagens. 

O livro organizado pelos pesquisadores João Francisco Cassino, Joyce Souza e Sérgio Amadeu da Silveira apresenta diversos artigos que tratam de colonialismo de dados. Dentre eles o artigo de Tarcízio Silva que discute conceitos como ordenação, colonialidade e opacidade algorítmica e dimensões humanas nas bases de dados.

Os pesquisadores Sarah Rúbia (Universidade Federal de Minas Gerais) e Ronaldo Ferreira (Universidade Federal de Alagoas) trazem nesse artigo uma investigação sobre a produção e uso do conhecimento científico no campo de pesquisa dos estudos raciais por meio de indicadores bibliométricos e altmétricos. A pesquisa é realizada a partir de abordagem exploratória, quantitativa e descritiva que analisa 4 mil registros e seus dados de citação na base de dados Dimension.

Licença para uma auto-indicação, eu tive a honra de ser a pesquisadora especialista convidada para realizar a análise dos dados desta pesquisa. A BlackOut é um mapeamento inédito, que tem como objetivo promover o fortalecimento do ecossistema de startups com dados relevantes sobre os negócios. Há alguns comparativos com recorte de raça e gênero e dados a partir de eixos como perfil do fundador, da stratup, empregabilidade, diversidade e agenda ESG.

Desinformação, discurso de ódio e a quebra do pacto social implícito

Publicado primeiramente em Bitniks.

Muniz Sodré tem uma passagem em seu livro Claros e Escuros que diz o seguinte: o que de fato parece chocar a consciência pública é a quebra do pacto social implícito de invisibilização dos mecanismos discriminatórios. Na realidade, a discriminação […] em todas as suas formas é fenômeno constante e socialmente problemático. 

Em nossa conversa anterior comentei que falaria por aqui sobre alguns sistemas de opressão relacionados à tecnologia, como a discriminação algorítmica, vazamento de dados, manipulação e clonagem de informações, entre outros. Hoje, especificamente, gostaria de chamar atenção para o problema da desinformação e do discurso de ódio.

1 Fonte: Capa da Pesquisa A violência política contra mulheres negras | Instituto Marielle Franco

A desinformação é o espalhamento de ideias falsas ou manipuladas que tem como objetivo causar uma confusão na sociedade. A partir principalmente de mediações tecnológicas como o computador ou o celular, a indústria da desinformação se aproveita da intolerância causada pela polarização política para invalidar a pluralidade de opiniões, reforçar concepções de determinados grupos sociais, disseminar violência discursiva e que as vezes até gera violência física.

Geralmente junto com a desinformação vem o discurso de ódio, a respeito desse tema o pesquisador Luiz Valério de Paula Trindade estudou 506 matérias jornalísticas que continham o termo “discurso de ódio”. Seu recorte temporal está entre os anos 1993 e 2018 e seu estudo aponta que é a partir de 2012 em que o termo aparece com maior frequência nos veículos analisados, com 92,6% de citações até 2018. Para o pesquisador, o fato está relacionado à expansão das plataformas de mídias sociais e revela uma urgente necessidade de debater o discurso de ódio no contexto digital global.

Um exemplo recente destes problemas é apresentado no estudo A violência política contra mulheres negras do Instituto Marielle Franco. A pesquisa indica quais as violências sofridas por mulheres negras no período pré-eleitoral, de campanha e pós-eleitoral de 2020. A partir do apontamento das participantes, 78% relatam ter sofrido algum tipo de violência virtual, o maior índice entre práticas mencionadas.

2 Fonte: Pesquisa A violência política contra mulheres negras | Instituto Marielle Franco

Dentre as variações destas violências virtuais estão o recebimento de mensagens racistas, machistas, misóginas ou LGBTfóbicas nas redes sociais e por e-mail, invasão e ofensas em reuniões virtuais ou lives, estas mulheres foram alvos de desinformação, hackeadas em perfis pessoais nas redes sociais ou em seus dispositivos eletrônicos. Como dito anteriormente, certos sistemas de opressão são intensificados com o uso de ferramentas tecnológicas. As mulheres negras, foco da pesquisa do Instituto Marielle, já são cotidianamente atingidas por discriminações de gênero, raça, classe, orientação sexual entre outros aspectos. A intermediação, o alcance e as consequências destas violências por meio da tecnologia reforça a  importância e a urgência de tratar do tema desinformação e discurso de ódio com uma seriedade interdisciplinar.

3 Fonte: Pesquisa A violência política contra mulheres negras | Instituto Marielle Franco

O problema é complexo e perpassa por diversos setores da sociedade que necessitam de conscientização e responsabilização como os setores governamentais, de comunicação, educacionais, da indústria de desinformação e dos usuários que colaboram com a disseminação.

Além destes, também é responsabilidade dos setores econômicos, como as grandes corporações e plataformas de mídias sociais, estas com grande poder de intervenção para, ao menos, reduzir os danos causados pela desinformação e discurso de ódio. É mais que urgente quebrar o pacto social implícito de invisibilização dos mecanismos discriminatórios, sobretudo daqueles que detém poder e informação, mas optam por amenizar ou esconder os impactos de fenômenos avassaladores como este.