Curadoria: 10 materiais para inspirar debates sobre ciência, tecnologia e sociedade

Durante todo esse ano conversamos por aqui sobre ciência, tecnologia e sociedade e passamos por temas como desinformação, discurso de ódio, deepfakes, perspectivas do Sul Global, gênero e tecnologia, conectividade e educação, tecnologia e impactos no clima, entre outros.

Já é um costume pessoal de fim do ano fazer uma lista de leituras que são imprescindíveis para basear discussões e escritas futuras. Deste modo, gostaria de compartilhar com vocês uma curadoria de 10 materiais, entre artigos, relatórios, pesquisas e entrevistas com publicação em 2021 e que tratam da temática ciência, tecnologia e sociedade que precisam entrar na sua lista de leitura.

  1. O relatório “Prioridades Antirracistas sobre Tecnologia e Sociedade” publicado pela Ação Educativa em parceria com a  Rede Negra em Tecnologia e Sociedade.

A partir da pergunta: quais são os consensos, dissensos, controvérsias e prioridades de pesquisadores negras e negros quando falam sobre justiça racial e tecnologias digitais de informação e comunicação? O relatório apresenta a percepção de diversos atores da sociedade a respeito tecnologia e justiça racial e a relação entre tecnologias digitais, raça e racismo no Brasil do ponto de vista de especialistas negras e negros do país.

Nana Miranda é Mestranda no Programa de Pós Graduação em Comunicaçã Social da PUC-Minas e neste artigo aborda diversos conceitos como dinâmicas e rastros digitais, produção de sentido, decisões maquínicas e racismo algorítmico.

O Data For Black Lives é uma organização norte-americana que conta diversos pesquisadores comprometidos em usar a ciência de dados para criar mudanças concretas e mensuráveis na vida da população negra. O website Data Capitalism: The fight begins here é um compilado de três artigos que explicam o que é o capitalismo de dados, sua relação com a escravidão e histórias de resistência.

O livro Afetando Tecnologias, Maquinando Inteligências é uma coletânea com as falas de diversos palestrantes que participaram do evento de nome homônimo. O pesquisador Sabelo Mhlambi trata da relação entre a tecnologia e tradições africanas, como a divinação Ifá. 

Um projeto também focado em utilização positiva dos dados, o material busca compreender como os movimentos feministas na África Subsaariana podem ser fortalecidos por meio da produção, compartilhamento e uso de dados sobre gênero, e como esse conhecimento pode ser traduzido em recomendações viáveis para empresas privadas de tecnologia.

Ana Carolina Costa dos Anjos é doutoranda no Programa de Pós Graduação em Sociologia, Universidade Federal de São Carlos e nessa entrevista, para o dossiê “Interfaces sociais da internet: reflexões sobre cultura, política e diferença” da Revista Askesis, conversa com os pesquisadores Larissa Pelúcio, Tarcízio Silva e Felipe Padilha discute digitalização e plataformização da sociedade, isolamento social, digitalização das relações sociais, entre outros temas.

Organizado por Bia Barbosa, Laura Tresca e Tanara Lauschner a coletânea traz textos com temas como participação das mulheres na governança de internet no Brasil, a violência contra as mulheres na internet, cancelamento, vazamento de nudes, mulheres e mercado de trabalho, entre outras abordagens. 

O livro organizado pelos pesquisadores João Francisco Cassino, Joyce Souza e Sérgio Amadeu da Silveira apresenta diversos artigos que tratam de colonialismo de dados. Dentre eles o artigo de Tarcízio Silva que discute conceitos como ordenação, colonialidade e opacidade algorítmica e dimensões humanas nas bases de dados.

Os pesquisadores Sarah Rúbia (Universidade Federal de Minas Gerais) e Ronaldo Ferreira (Universidade Federal de Alagoas) trazem nesse artigo uma investigação sobre a produção e uso do conhecimento científico no campo de pesquisa dos estudos raciais por meio de indicadores bibliométricos e altmétricos. A pesquisa é realizada a partir de abordagem exploratória, quantitativa e descritiva que analisa 4 mil registros e seus dados de citação na base de dados Dimension.

Licença para uma auto-indicação, eu tive a honra de ser a pesquisadora especialista convidada para realizar a análise dos dados desta pesquisa. A BlackOut é um mapeamento inédito, que tem como objetivo promover o fortalecimento do ecossistema de startups com dados relevantes sobre os negócios. Há alguns comparativos com recorte de raça e gênero e dados a partir de eixos como perfil do fundador, da stratup, empregabilidade, diversidade e agenda ESG.

Desinformação, discurso de ódio e a quebra do pacto social implícito

Publicado primeiramente em Bitniks.

Muniz Sodré tem uma passagem em seu livro Claros e Escuros que diz o seguinte: o que de fato parece chocar a consciência pública é a quebra do pacto social implícito de invisibilização dos mecanismos discriminatórios. Na realidade, a discriminação […] em todas as suas formas é fenômeno constante e socialmente problemático. 

Em nossa conversa anterior comentei que falaria por aqui sobre alguns sistemas de opressão relacionados à tecnologia, como a discriminação algorítmica, vazamento de dados, manipulação e clonagem de informações, entre outros. Hoje, especificamente, gostaria de chamar atenção para o problema da desinformação e do discurso de ódio.

1 Fonte: Capa da Pesquisa A violência política contra mulheres negras | Instituto Marielle Franco

A desinformação é o espalhamento de ideias falsas ou manipuladas que tem como objetivo causar uma confusão na sociedade. A partir principalmente de mediações tecnológicas como o computador ou o celular, a indústria da desinformação se aproveita da intolerância causada pela polarização política para invalidar a pluralidade de opiniões, reforçar concepções de determinados grupos sociais, disseminar violência discursiva e que as vezes até gera violência física.

Geralmente junto com a desinformação vem o discurso de ódio, a respeito desse tema o pesquisador Luiz Valério de Paula Trindade estudou 506 matérias jornalísticas que continham o termo “discurso de ódio”. Seu recorte temporal está entre os anos 1993 e 2018 e seu estudo aponta que é a partir de 2012 em que o termo aparece com maior frequência nos veículos analisados, com 92,6% de citações até 2018. Para o pesquisador, o fato está relacionado à expansão das plataformas de mídias sociais e revela uma urgente necessidade de debater o discurso de ódio no contexto digital global.

Um exemplo recente destes problemas é apresentado no estudo A violência política contra mulheres negras do Instituto Marielle Franco. A pesquisa indica quais as violências sofridas por mulheres negras no período pré-eleitoral, de campanha e pós-eleitoral de 2020. A partir do apontamento das participantes, 78% relatam ter sofrido algum tipo de violência virtual, o maior índice entre práticas mencionadas.

2 Fonte: Pesquisa A violência política contra mulheres negras | Instituto Marielle Franco

Dentre as variações destas violências virtuais estão o recebimento de mensagens racistas, machistas, misóginas ou LGBTfóbicas nas redes sociais e por e-mail, invasão e ofensas em reuniões virtuais ou lives, estas mulheres foram alvos de desinformação, hackeadas em perfis pessoais nas redes sociais ou em seus dispositivos eletrônicos. Como dito anteriormente, certos sistemas de opressão são intensificados com o uso de ferramentas tecnológicas. As mulheres negras, foco da pesquisa do Instituto Marielle, já são cotidianamente atingidas por discriminações de gênero, raça, classe, orientação sexual entre outros aspectos. A intermediação, o alcance e as consequências destas violências por meio da tecnologia reforça a  importância e a urgência de tratar do tema desinformação e discurso de ódio com uma seriedade interdisciplinar.

3 Fonte: Pesquisa A violência política contra mulheres negras | Instituto Marielle Franco

O problema é complexo e perpassa por diversos setores da sociedade que necessitam de conscientização e responsabilização como os setores governamentais, de comunicação, educacionais, da indústria de desinformação e dos usuários que colaboram com a disseminação.

Além destes, também é responsabilidade dos setores econômicos, como as grandes corporações e plataformas de mídias sociais, estas com grande poder de intervenção para, ao menos, reduzir os danos causados pela desinformação e discurso de ódio. É mais que urgente quebrar o pacto social implícito de invisibilização dos mecanismos discriminatórios, sobretudo daqueles que detém poder e informação, mas optam por amenizar ou esconder os impactos de fenômenos avassaladores como este.

Sobre a pedagogia que liberta a tecnologia

Publicado primeiramente em Bitniks.

A primeira vez que tive contato com um computador foi em 1998, eu tinha oito anos. Meu irmão, sete anos mais velho, sempre foi entusiasmado com tecnologia. Estudava, montava e desmontava eletrônicos em casa, fazia diversos cursos, me ensinou datilografia numa arcaica máquina de escrever antes de ganharmos, da ex-patroa da minha mãe, o nosso tão sonhado Compaq Presario branco, tela de tubo, mouse de bolinha com fio e uma CPU imensa e barulhenta.

Meu irmão ia para a escola e dizia “pode usar o computador, só não formata ele” e aos oito anos meu passatempo era brincar no Paint, descobrir para que servia todos os Fn’s do teclado, conversar com o clipe do Word e fazer capas coloridas no WordArt. Anos depois meu irmão passou a trabalhar numa papelaria e então ele conseguia CDs da America Online mais baratos e assim tive minha iniciação à internet, mesmo que discada, depois da meia ou fim de semana até seis da manhã de segunda-feira. 

Sempre nerd, passava horas jogando no site Fliperama do IG, treinando testes de lógica e às vezes tentando decorar meu número de ICQ. Durante os três anos do ensino médio o meu cursinho foi o site Vestibular 1 que traz, ainda hoje, vários conteúdos e roteiros de estudo para processos seletivos. Eu passei a maioria destes três anos certa que ia prestar para Psicologia, mas, no último ano, depois de uma palestra sobre marketing e de pesquisar mais sobre a área da comunicação decidi por cursar Relações Públicas.

Ainda na faculdade, em 2009, criei junto com um amigo um blog sobre Relações Públicas. Esse projeto durou dez anos e foi uma sala de aula a parte para a minha formação. Por meio desse blog conheci pessoas que eu admirava de longe, fui a eventos, viagens e congressos. Ganhamos reconhecimento, demos palestras, nos envolvíamos em discussões políticas em relação à categoria. Foram excelentes 10 anos.

Essa constante aproximação com internet e tecnologia me motivou a atuar profissionalmente com comunicação digital. Mais tarde me tornei Mestre em Ciências Humanas e Sociais pesquisando as relações e aspectos sociais de afroempreendedores a partir das mídias sociais. E atualmente, no doutorado, estudo o impacto da desinformação e do discurso de ódio em comunidades racializadas.

Bom, toda essa história é importante para pontuar o quanto a tecnologia pode ser benéfica do ponto de vista individual. Para mim foi. Eu desenvolvi minha intelectualidade, aprendi, conheci pessoas e descobri meu campo de atuação a partir das minhas experiências individuais. Mas nós não podemos nos distanciar da análise crítica da tecnologia do ponto de vista coletivo e social.

Obra Onipresente e Imortal N. 4 – Adinkra Asante | Abdias Nascimento

Para tanto, gostaria de abrir os caminhos desta coluna com uma reflexão a partir de Abdias Nascimento (1914-2011). Abdias foi uma pessoa extremamente interdisciplinar, o que é muito importante em contextos complexos. Era poeta, dramaturgo, artista plástico, ativista pan-africanista, fundou o Teatro Experimental do Negro e o Museu de Arte Negra. Além disso Abdias foi Professor Emérito da Universidade do Estado de Nova York, deputado federal, senador da República e secretário do Governo do Estado do Rio de Janeiro.

Formou-se em Economia na Universidade do Rio de Janeiro, pós-graduado no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e em Estudos do Mar no Instituto de Oceanografia. Além da formação, Abdias Nascimento também coleciona títulos de Doutor Honoris Causa de instituições de ensino como a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, da Universidade Federal da Bahia, da Universidade de Brasília, da Universidade do Estado da Bahia e da Universidade Obafemi Awolowo em Ilé-Ifé, da Nigéria.

Abdias definitivamente é um dos maiores e mais importantes pensadores do Brasil e parte de sua história pode ser lida aqui, mas gostaria de compartilhar um trecho específico do livro O Quilombismo cujo título é “A respeito da Ciência e da Tecnologia” em um discurso proferido por Abdias Nascimento no VI Congresso Pan-Africano, em junho de 1974.

Ele fala a partir de um contexto pan-africano e há 47 anos atrás, mas acredito que podemos, no nosso contexto, nos beneficiar de suas reflexões. Abdias inicia encorajando a investigação e a apropriação independente da ciência e tecnologia para o desenvolvimento das nações e em benefício do ambiente e da realidade humana. Ressalta isso sobretudo ao criticar os grandes monopólios que “vendem” uma suposta liberdade tecnológica ou uma liberdade a partir do uso das tecnologias. Para Nascimento, esta dependência científica e tecnológica equivale à criação de sistemas de opressão pois, em seu modelo neocolonial, está baseada puramente em lucro.

O uso no sentido social da tecnologia a partir de uma cooperação tecno-cientifica implicaria num sistema de valores amparados na soberania de consciência, no conhecimento e nas projeções tecnológicas rumando ao objetivo de emancipação. Dessa forma, Abdias vê na autonomia tecnológica não somente a fundação de justiça social e respeito à dignidade humana, mas também um requisito para o progresso econômico internacional da humanidade e da soberania dos povos.

O primeiro ponto que chama atenção é o estímulo à investigação científica, mais do que nunca estamos vendo e vivendo o quanto a ciência é importante em momentos decisivos, como uma pandemia mundial. E isso não é somente sobre as chamadas “ciências duras”, mas, assim como Abdias, todas as maneiras de pensar, teorizar, discutir, desenvolver e executar soluções a partir de uma interdisciplinaridade que dê conta deste contexto complexo.

Falei sobre os meus benefícios individuais em que a tecnologia foi minha aliada para provocar principalmente a respeito dessa tal liberdade tecnológica. Hoje, 47 anos depois do discurso de Abdias, estamos num patamar bastante preocupante quanto a interferência das tecnologias e dos conglomerados em assuntos que são da ordem pública e social.

Há de fato sistemas de opressão amparados em tecnologia operando na sociedade. Talvez nem todos sejam novos sistemas de opressão, mas são sistemas intensificados com a tecnologia, por exemplo: desinformação, discurso de ódio, discriminação algorítmica, vazamento de dados, manipulação e clonagem de informações, entre outros. Como afirma Ruha Benjamin a tecnologia é um dos muitos meios pelos quais as formas anteriores de desigualdade são atualizadas.

Vamos falar um pouco dessas questões e seus impactos por aqui, mas também falaremos das contra-narrativas possíveis e caminhos rumo a essa emancipação da qual já era necessária em 1974 e hoje se faz urgente. Pois assim como Abdias Nascimento, eu também “acredito na pedagogia que liberta a tecnologia de sua atual tendência de escravizar o ser humano”.

Blackout – Mapa das Startups Negras

Saiu a Blackout – Mapa das Startups Negras, uma realização da BlackRocks e que tive a honra de analisar os dados como pesquisadora convidada. O estudo traz um panorama do perfil do/a fundador/a, da startup, envolvimento com a agenda ESG, diversidade e empregabilidade.

O objetivo é oferecer dados e análises que possam colaborar com o desenvolvimento do setor de inovação e tecnologia no Brasil e que seja um apoio para a reflexão e propostas de soluções para as disparidades existentes no ecossistema.

Acesse o mapa aqui.

10 lives sobre relações étnico-raciais para rever

Em decorrência do distanciamento social imposto pela pandemia do novo coronavírus, 2020 foi o ano das lives. A ferramenta se tornou uma grande aliada da divulgação científica, popularização de debates e expansão de alcance territorial. Algumas dessas lives foram verdadeiras aulas e vou listar aqui as lives sobre relações étnico-raciais que merecem ser revistas.

1: Ciclo de debates “Racismo e Antirracismo na atualidade”

Não se trata de uma única live, mas de uma série de bate-papos em torno da temática racismo e antirracismo organizado pelo NEAB/UFABC (Núcleo de Estudos Africanos e Afro-brasileiros). Foram oito encontros sobre:

2: Nas #JornadasAntirracistas da Companhia das Letras a live Feminismos negros, com Sueli Carneiro, Bianca Santana, Djamila Ribeiro e Flávia Oliveira

3: Nas #JornadasAntirracistas da Companhia das Letras a live Racismo estrutural e institucional com Cida Bento, Silvio Almeida, Jurema Werneck e Ronilso Pacheco

4: A live de abertura do Semestre Letivo Suplementar dos programas de pós-graduação Pós-Cultura (IHAC/UFBA) e Pós-História Profissional (CAHL/UFRB) com Ailton Krenak e Mateus Aleluia.

5: Audino Vilão e Emicida conversando sobre Filosofias das ruas

6: André Brock na live On Race and Technoculture do Data & Society Research Institute

7: Live da ABPN (Associação Brasileira de Pesquisadores Negros) sobre Intelectualidade Negra e Antirracista & NEAB(I)s.

8: Live Tecnologia, Raça e Gênero do Núcleo de Solidariedade Tecnica – SOLTEC/UFRJ com Tarcízio Silva e Sil Bahia.

9: Lançamento do livro A razão Africana com Muryatan S. Barbosa, Acácio Almeida e Flávia Rios.

10: Aula aberta na Casa 1 sobre Racismo e Algoritmos com Nina da Hora