Perspectivas tecnológicas do Sul Global. Mas qual Sul?

Publicado primeiramente em Bitniks.

Nos últimos anos tem se popularizado eventos, disciplinas, cursos e publicações na área da tecnologia que evocam as “perspectivas do Sul Global” baseados em promessas de um olhar decolonial (ou descolonial ou pós-colonial), porém quase sempre são as mesmas referências, os mesmos nomes e as mesmas perspectivas hegemônicas de sempre.

Inclusive a própria falta de consenso e o infinito debate em relação ao conceito e aplicação dos termos “decolonial”, “descolonial” ou “pós-colonial” denuncia a falta de foco no que realmente importa. Invés de horas a fio debatendo o conceito, que tal questionar as práticas acadêmicas que seguem eurocentradas, machistas, elitistas e fincadas no sistema da branquitude?

Quando há uma singela demonstração de interseccionalidade nos eventos, disciplinas, cursos e publicações ainda prevalece a política do “único representante”. A única pessoa não-branca, a única mulher, a única pessoa LGBTQI+ e assim por diante. A homogeneização de grupos tão plurais é tão violenta quanto seu apagamento.

Permanecer com os mesmos olhares e pontos de vista em situações que provocam a reflexão sobre novos modos de sociedade leva à reflexão sobre a necessidade de questionar os representantes de sempre, pois foram esses olhares que nos trouxeram até aqui e até as nossas problemáticas contemporâneas.

A ciência e o conhecimento oriundo do continente africano quase nunca são lembrados nestas atividades do “Sul Global” que se pretendem decoloniais. Deste modo, aproveito a celebração do Dia da África (25/5) – data para recordar a luta por independência de países africanos – e este espaço para apresentar (ou relembrar) alguns pesquisadores da Ciência, Sociedade & Tecnologia que tem feito importantes contribuições para debates atuais.

Abeba Birhane (Étiópia): É doutoranda em ciências cognitivas no Complex Software Lab da University College Dublin na School of Computer Science. Sua pesquisa perpassa as relações entre tecnologias emergentes e os impactos sociais, políticos e econômicos na sociedade. Abeba também dá aulas sobre Pensamento Crítico e Ética em Dados, Inteligência Artificial para ciência de dados, Introdução à Ética e Pensamento Crítico. Entre suas principais publicações está o artigo Algorithmic colonization of Africa.

Artwell Nhemachena (Namíbia): É Doutor em Antropologia Social atua em áreas como Estudos Sociológicos e Antropológicos de Ciência e Tecnologia, Governança e Democracia, Transformações e Decoloniedades, entre outros. No livro Decolonising Science, Technology, Engineering and Mathematics (STEM) in an Age of Technocolonialism: Recentring African Indigenous Knowledge and Belief Systems do qual o professor é co-organizador, discute-se as noções de colonialidade da ignorância e geopolítica da ignorância como central para a colonialidade e colonização.

Ayodele James Akinola (Nigéria): Pesquisa, principalmente, em torno das Humanidades Digitais e a aplicação das Tecnologias de Informação e Comunicação para fins educacionais. No artigo Pragmatics of crisis-motivated humour in computer mediated platforms in Nigeria discute como o humor é mediado pela tecnologia e os impactos em aspectos sociopolíticos na Nigéria.

Edda Tandi Lwoga (Tanzania): É Professora Associada em Ciência da Informação no College of Business Education (CBE) na Tanzânia. Ela também é o Ponto Focal do País (CFP) do Acesso Digital à Pesquisa – Banco de Tecnologia das Nações Unidas na Tanzânia. Suas pesquisas têm como foco sistemas de informação, gestão do conhecimento, acesso aberto e dados abertos, TIC para o desenvolvimento, TIC e empoderamento de jovens e mulheres, ciência da informação e e-learning. Entre seus artigos mais citados está o  New technologies for teaching and learning: Challenges for higher learning institutions in developing countries.

Francis B. Nyamnjoh (Camarões): Nascido em Camarões, atualmente é Professor nas áreas de sociologia, antropologia e estudos de comunicação da University of Cape Town. Suas pesquisas tratam de temas como globalização, mídia, identidade, mobilidade e uma de suas principais obras é o livro #RhodesMustFall: Nibbling at resilient colonialism in South Africa que discute problemas sociais existentes na África do Sul pós-apartheid e tem como base de análise o movimento Rhodes Must Fall liderado por jovens universitários.

Gado Alzouma (Nigéria): Professor de Sociologia e Antropologia na American University da Nigéria. Suas pesquisas são focadas em informação, comunicação e tecnologia para o desenvolvimento social. Em seu artigo Myths of Digital Technology in Africa: Leapfrogging Development? analisa criticamente as promessas de uma sociedadde tecnocentrista em torno do contexto social da África.

Rediet Abebe (Etiópia): É cientista da computação, atua especialmente com algoritmos e inteligência artificial e seus impactos sociais e raciais. Atualmente é Junior Fellow na Harvard Society of Fellows e Professora Assistente em Ciência da Computação na University of California. É co-organizadora do Mechanism Design for Social Good  e co-fondudadora do Black in AI. Um dos seus artigos mais citados é o Using search queries to understand health information needs in africa.

Sabelo J Ndlovu-Gatsheni (Zimbabwe): Professor especialista em Epistemologias do Sul Global com ênfase em África na University of Bayreuth, na Alemanha. Sabelo é um importante teórico descolonial com diversas publicações, dentre as quais The primacy of knowledge in the making of shifting modern global imaginaries, Coloniality of power in postcolonial Africa: Myths of Decolonization, The decolonial Mandela: Peace, justice and the politics of life, entre outros.

Sarah Chiumbu (África do Sul): Professora associada na Escola de Comunicação da Universidade de Joanesburgo, seus estudos são focados em mídia, democracia e cidadania, novas mídias, estudos de políticas, movimentos sociais, pensamento político africano, teorias descoloniais e pós-coloniais. Seu artigo mais referenciado, o Exploring mobile phone practices in social movements in South Africa–the Western Cape Anti-Eviction Campaign, trata do conjunto de novas práticas dos movimentos sociais a partir da popularização dos aparelhos celulares na África do Sul.

Tanja Bosch (África do Sul): Professora Associada de Estudos e Produção de Mídia na Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul. Recentemente publicou o livro Social Media and Everyday Life in South Africa onde investiga como as plataformas de mídias sociais e demais tecnologias se tornaram ferramentas cotidianas para os sul africanos.

            A diversidade nas visões de mundo, a troca de experiências a partir de contextos similares, o conhecimento de referências para além do cânone padrão só tendem a agregar no urgente debate sobre Ciência, Sociedade & Tecnologia. Então, que façamos uso estratégico desta poderosa ferramenta que nos conecta. E viva à África.

Impactos sociais e políticos das Deepfakes

Publicado primeiramente em Bitnik.

Talvez em algum momento de 2020 você tenha se deparado com o vídeo sobre “uma criatura circulando” pelas ruas de Fortaleza (CE), Ilhéus (BA), João Pessoa (PB) ou Teixeira de Freitas (BA). De primeira parece algo curioso, assustador, inédito e até engraçado, mas na verdade esse tipo de conteúdo, além de ser uma mentira alarmista, evidencia que a manipulação de imagens e vídeos se tornou uma prática muito perigosa e corriqueira.

As Deepfakes são fruto de uma técnica bastante utilizada e debatida, principalmente a respeito de suas consequências. Trata-se da tentativa de repetir comportamentos humanos com base em milhões de imagens alocadas em bancos de dados e produzidas em processos de aprendizado de máquina a partir de redes neurais. Assim, é possível, por exemplo, fazer com que o Justin Bieber venha passear no Brasil, que o Barack Obama ofenda o Trump, criar um looping de Marthin Luther King e até a criação de nudes falsos.

Há diversos problemas sérios em torno das Deepkakes, como:

  • a criação de “fatos” difíceis de distinguir se é realidade ou ficcional;
  • a popularização de aplicativos especializados em criar esse tipo de material e seus interesses comerciais;
  • esses aplicativos disponibilizam um variado banco de imagens de personalidades públicas, todavia muitas vezes sem a expressa autorização do uso de sua imagem;
  • inserção de pessoas em contextos adversos como em falácias, pornografia ou crimes;
  • espalhamento rápido e em larga escala por meio das plataformas de mídias sociais;
  • e impacto direto na conversação pública por meio de produção de desinformação.

O relatório Deepfakes and Cheap Fakes do Data & Society mostra como funcionam os processos de manipulação de vídeos e imagens usando aprendizado de máquina a partir de redes neurais e por ferramentas mais populares, as chamadas “cheap fakes” expressão que pode ser traduzida como “falsificação barata”.

No infográfico abaixo há alguns exemplos de manipulação audiovisual (AV) que ilustram como os deepfakes e essas “falsificações baratas” se diferenciam em sofisticação técnica. Da esquerda para a direita, a complexidade técnica diminui e a capacidade do público em geral de produzir falsificações aumenta. Por outro lado, o desenvolvimento de deepfakes é mais dependente computacionalmente e menos acessível.

1 Tela do relatório Deepfakes and Cheap Fakes

Outro estudo realizado pelos pesquisadores Shu Hu, Yuezun Li Siwei Lyu da Universidade de Buffalo (EUA) propõe uma ferramenta que pretende revelar se determinada imagem é uma deepfake através do reflexo nos olhos, o que eles chamam de “a inconsistência dos destaques especulares da córnea entre os dois olhos sintetizados”. Os pesquisadores desenvolveram uma base de dados para o estudo com fotos reais do Flicker-Faces-HQ e fotografias falsas do site This Person Does Not Exist (Esta Pessoa Não Existe), plataforma que disponibiliza fotos de pessoas criadas a partir da mesma lógica de aprendizado de máquina e redes neurais.

Segundo os pesquisadores, a partir da análise do espelhamento da córnea gerado somente em fotografias reais é possível observar as disparidades com imagens não reais, por exemplo formas geométricas e posição do reflexo de forma desigual. Ou seja, ao olhar para uma mesma cena os dois olhos vão transmitir de maneira similar o reflexo do ambiente, o que não ocorre em imagens produzidas por aprendizado de máquina. A ferramenta ainda está em fase de ajustes, como os próprios autores apontam no artigo contextos e condições das fotografias podem gerar falsos positivos, mas no artigo publicado em outubro de 2020 os testes chegaram a 94% de eficácia.    

2 Tela do Artigo Exposing GAN-generated Faces Using Inconsistent Corneal Specular Highlights

Como afirma Milton Santos em uma passagem de Técnica, Espaço, Tempo – Globalização e meio técnico-científico informacional: “Quando a crítica não é acompanhada pela análise, ela permite a mobilização, mas não a construção. A crítica deveria suceder à análise, mas o que acontece, na maioria dos casos, é que a necessidade de ser crítico opera como se o analítico fosse dispensável”.

Especialistas defendem que algumas respostas possíveis às deepfakes e outras técnicas de manipulação de conteúdo devem estar amparadas em regulação e normas, educação midiática, mudança de postura cultural da sociedade para lidar e evitar com esse tipo de conteúdo e responsabilização das plataformas. É preciso uma abordagem interdisciplinar, interseccional e aprofundada para compreender as causas, consequências e contenções dessa modalidade de distorção da realidade a partir do uso de tecnologias.  

Curadoria: 10 materiais para inspirar debates sobre ciência, tecnologia e sociedade

Durante todo esse ano conversamos por aqui sobre ciência, tecnologia e sociedade e passamos por temas como desinformação, discurso de ódio, deepfakes, perspectivas do Sul Global, gênero e tecnologia, conectividade e educação, tecnologia e impactos no clima, entre outros.

Já é um costume pessoal de fim do ano fazer uma lista de leituras que são imprescindíveis para basear discussões e escritas futuras. Deste modo, gostaria de compartilhar com vocês uma curadoria de 10 materiais, entre artigos, relatórios, pesquisas e entrevistas com publicação em 2021 e que tratam da temática ciência, tecnologia e sociedade que precisam entrar na sua lista de leitura.

  1. O relatório “Prioridades Antirracistas sobre Tecnologia e Sociedade” publicado pela Ação Educativa em parceria com a  Rede Negra em Tecnologia e Sociedade.

A partir da pergunta: quais são os consensos, dissensos, controvérsias e prioridades de pesquisadores negras e negros quando falam sobre justiça racial e tecnologias digitais de informação e comunicação? O relatório apresenta a percepção de diversos atores da sociedade a respeito tecnologia e justiça racial e a relação entre tecnologias digitais, raça e racismo no Brasil do ponto de vista de especialistas negras e negros do país.

Nana Miranda é Mestranda no Programa de Pós Graduação em Comunicaçã Social da PUC-Minas e neste artigo aborda diversos conceitos como dinâmicas e rastros digitais, produção de sentido, decisões maquínicas e racismo algorítmico.

O Data For Black Lives é uma organização norte-americana que conta diversos pesquisadores comprometidos em usar a ciência de dados para criar mudanças concretas e mensuráveis na vida da população negra. O website Data Capitalism: The fight begins here é um compilado de três artigos que explicam o que é o capitalismo de dados, sua relação com a escravidão e histórias de resistência.

O livro Afetando Tecnologias, Maquinando Inteligências é uma coletânea com as falas de diversos palestrantes que participaram do evento de nome homônimo. O pesquisador Sabelo Mhlambi trata da relação entre a tecnologia e tradições africanas, como a divinação Ifá. 

Um projeto também focado em utilização positiva dos dados, o material busca compreender como os movimentos feministas na África Subsaariana podem ser fortalecidos por meio da produção, compartilhamento e uso de dados sobre gênero, e como esse conhecimento pode ser traduzido em recomendações viáveis para empresas privadas de tecnologia.

Ana Carolina Costa dos Anjos é doutoranda no Programa de Pós Graduação em Sociologia, Universidade Federal de São Carlos e nessa entrevista, para o dossiê “Interfaces sociais da internet: reflexões sobre cultura, política e diferença” da Revista Askesis, conversa com os pesquisadores Larissa Pelúcio, Tarcízio Silva e Felipe Padilha discute digitalização e plataformização da sociedade, isolamento social, digitalização das relações sociais, entre outros temas.

Organizado por Bia Barbosa, Laura Tresca e Tanara Lauschner a coletânea traz textos com temas como participação das mulheres na governança de internet no Brasil, a violência contra as mulheres na internet, cancelamento, vazamento de nudes, mulheres e mercado de trabalho, entre outras abordagens. 

O livro organizado pelos pesquisadores João Francisco Cassino, Joyce Souza e Sérgio Amadeu da Silveira apresenta diversos artigos que tratam de colonialismo de dados. Dentre eles o artigo de Tarcízio Silva que discute conceitos como ordenação, colonialidade e opacidade algorítmica e dimensões humanas nas bases de dados.

Os pesquisadores Sarah Rúbia (Universidade Federal de Minas Gerais) e Ronaldo Ferreira (Universidade Federal de Alagoas) trazem nesse artigo uma investigação sobre a produção e uso do conhecimento científico no campo de pesquisa dos estudos raciais por meio de indicadores bibliométricos e altmétricos. A pesquisa é realizada a partir de abordagem exploratória, quantitativa e descritiva que analisa 4 mil registros e seus dados de citação na base de dados Dimension.

Licença para uma auto-indicação, eu tive a honra de ser a pesquisadora especialista convidada para realizar a análise dos dados desta pesquisa. A BlackOut é um mapeamento inédito, que tem como objetivo promover o fortalecimento do ecossistema de startups com dados relevantes sobre os negócios. Há alguns comparativos com recorte de raça e gênero e dados a partir de eixos como perfil do fundador, da stratup, empregabilidade, diversidade e agenda ESG.

Desinformação, discurso de ódio e a quebra do pacto social implícito

Publicado primeiramente em Bitniks.

Muniz Sodré tem uma passagem em seu livro Claros e Escuros que diz o seguinte: o que de fato parece chocar a consciência pública é a quebra do pacto social implícito de invisibilização dos mecanismos discriminatórios. Na realidade, a discriminação […] em todas as suas formas é fenômeno constante e socialmente problemático. 

Em nossa conversa anterior comentei que falaria por aqui sobre alguns sistemas de opressão relacionados à tecnologia, como a discriminação algorítmica, vazamento de dados, manipulação e clonagem de informações, entre outros. Hoje, especificamente, gostaria de chamar atenção para o problema da desinformação e do discurso de ódio.

1 Fonte: Capa da Pesquisa A violência política contra mulheres negras | Instituto Marielle Franco

A desinformação é o espalhamento de ideias falsas ou manipuladas que tem como objetivo causar uma confusão na sociedade. A partir principalmente de mediações tecnológicas como o computador ou o celular, a indústria da desinformação se aproveita da intolerância causada pela polarização política para invalidar a pluralidade de opiniões, reforçar concepções de determinados grupos sociais, disseminar violência discursiva e que as vezes até gera violência física.

Geralmente junto com a desinformação vem o discurso de ódio, a respeito desse tema o pesquisador Luiz Valério de Paula Trindade estudou 506 matérias jornalísticas que continham o termo “discurso de ódio”. Seu recorte temporal está entre os anos 1993 e 2018 e seu estudo aponta que é a partir de 2012 em que o termo aparece com maior frequência nos veículos analisados, com 92,6% de citações até 2018. Para o pesquisador, o fato está relacionado à expansão das plataformas de mídias sociais e revela uma urgente necessidade de debater o discurso de ódio no contexto digital global.

Um exemplo recente destes problemas é apresentado no estudo A violência política contra mulheres negras do Instituto Marielle Franco. A pesquisa indica quais as violências sofridas por mulheres negras no período pré-eleitoral, de campanha e pós-eleitoral de 2020. A partir do apontamento das participantes, 78% relatam ter sofrido algum tipo de violência virtual, o maior índice entre práticas mencionadas.

2 Fonte: Pesquisa A violência política contra mulheres negras | Instituto Marielle Franco

Dentre as variações destas violências virtuais estão o recebimento de mensagens racistas, machistas, misóginas ou LGBTfóbicas nas redes sociais e por e-mail, invasão e ofensas em reuniões virtuais ou lives, estas mulheres foram alvos de desinformação, hackeadas em perfis pessoais nas redes sociais ou em seus dispositivos eletrônicos. Como dito anteriormente, certos sistemas de opressão são intensificados com o uso de ferramentas tecnológicas. As mulheres negras, foco da pesquisa do Instituto Marielle, já são cotidianamente atingidas por discriminações de gênero, raça, classe, orientação sexual entre outros aspectos. A intermediação, o alcance e as consequências destas violências por meio da tecnologia reforça a  importância e a urgência de tratar do tema desinformação e discurso de ódio com uma seriedade interdisciplinar.

3 Fonte: Pesquisa A violência política contra mulheres negras | Instituto Marielle Franco

O problema é complexo e perpassa por diversos setores da sociedade que necessitam de conscientização e responsabilização como os setores governamentais, de comunicação, educacionais, da indústria de desinformação e dos usuários que colaboram com a disseminação.

Além destes, também é responsabilidade dos setores econômicos, como as grandes corporações e plataformas de mídias sociais, estas com grande poder de intervenção para, ao menos, reduzir os danos causados pela desinformação e discurso de ódio. É mais que urgente quebrar o pacto social implícito de invisibilização dos mecanismos discriminatórios, sobretudo daqueles que detém poder e informação, mas optam por amenizar ou esconder os impactos de fenômenos avassaladores como este.

Sobre a pedagogia que liberta a tecnologia

Publicado primeiramente em Bitniks.

A primeira vez que tive contato com um computador foi em 1998, eu tinha oito anos. Meu irmão, sete anos mais velho, sempre foi entusiasmado com tecnologia. Estudava, montava e desmontava eletrônicos em casa, fazia diversos cursos, me ensinou datilografia numa arcaica máquina de escrever antes de ganharmos, da ex-patroa da minha mãe, o nosso tão sonhado Compaq Presario branco, tela de tubo, mouse de bolinha com fio e uma CPU imensa e barulhenta.

Meu irmão ia para a escola e dizia “pode usar o computador, só não formata ele” e aos oito anos meu passatempo era brincar no Paint, descobrir para que servia todos os Fn’s do teclado, conversar com o clipe do Word e fazer capas coloridas no WordArt. Anos depois meu irmão passou a trabalhar numa papelaria e então ele conseguia CDs da America Online mais baratos e assim tive minha iniciação à internet, mesmo que discada, depois da meia ou fim de semana até seis da manhã de segunda-feira. 

Sempre nerd, passava horas jogando no site Fliperama do IG, treinando testes de lógica e às vezes tentando decorar meu número de ICQ. Durante os três anos do ensino médio o meu cursinho foi o site Vestibular 1 que traz, ainda hoje, vários conteúdos e roteiros de estudo para processos seletivos. Eu passei a maioria destes três anos certa que ia prestar para Psicologia, mas, no último ano, depois de uma palestra sobre marketing e de pesquisar mais sobre a área da comunicação decidi por cursar Relações Públicas.

Ainda na faculdade, em 2009, criei junto com um amigo um blog sobre Relações Públicas. Esse projeto durou dez anos e foi uma sala de aula a parte para a minha formação. Por meio desse blog conheci pessoas que eu admirava de longe, fui a eventos, viagens e congressos. Ganhamos reconhecimento, demos palestras, nos envolvíamos em discussões políticas em relação à categoria. Foram excelentes 10 anos.

Essa constante aproximação com internet e tecnologia me motivou a atuar profissionalmente com comunicação digital. Mais tarde me tornei Mestre em Ciências Humanas e Sociais pesquisando as relações e aspectos sociais de afroempreendedores a partir das mídias sociais. E atualmente, no doutorado, estudo o impacto da desinformação e do discurso de ódio em comunidades racializadas.

Bom, toda essa história é importante para pontuar o quanto a tecnologia pode ser benéfica do ponto de vista individual. Para mim foi. Eu desenvolvi minha intelectualidade, aprendi, conheci pessoas e descobri meu campo de atuação a partir das minhas experiências individuais. Mas nós não podemos nos distanciar da análise crítica da tecnologia do ponto de vista coletivo e social.

Obra Onipresente e Imortal N. 4 – Adinkra Asante | Abdias Nascimento

Para tanto, gostaria de abrir os caminhos desta coluna com uma reflexão a partir de Abdias Nascimento (1914-2011). Abdias foi uma pessoa extremamente interdisciplinar, o que é muito importante em contextos complexos. Era poeta, dramaturgo, artista plástico, ativista pan-africanista, fundou o Teatro Experimental do Negro e o Museu de Arte Negra. Além disso Abdias foi Professor Emérito da Universidade do Estado de Nova York, deputado federal, senador da República e secretário do Governo do Estado do Rio de Janeiro.

Formou-se em Economia na Universidade do Rio de Janeiro, pós-graduado no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e em Estudos do Mar no Instituto de Oceanografia. Além da formação, Abdias Nascimento também coleciona títulos de Doutor Honoris Causa de instituições de ensino como a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, da Universidade Federal da Bahia, da Universidade de Brasília, da Universidade do Estado da Bahia e da Universidade Obafemi Awolowo em Ilé-Ifé, da Nigéria.

Abdias definitivamente é um dos maiores e mais importantes pensadores do Brasil e parte de sua história pode ser lida aqui, mas gostaria de compartilhar um trecho específico do livro O Quilombismo cujo título é “A respeito da Ciência e da Tecnologia” em um discurso proferido por Abdias Nascimento no VI Congresso Pan-Africano, em junho de 1974.

Ele fala a partir de um contexto pan-africano e há 47 anos atrás, mas acredito que podemos, no nosso contexto, nos beneficiar de suas reflexões. Abdias inicia encorajando a investigação e a apropriação independente da ciência e tecnologia para o desenvolvimento das nações e em benefício do ambiente e da realidade humana. Ressalta isso sobretudo ao criticar os grandes monopólios que “vendem” uma suposta liberdade tecnológica ou uma liberdade a partir do uso das tecnologias. Para Nascimento, esta dependência científica e tecnológica equivale à criação de sistemas de opressão pois, em seu modelo neocolonial, está baseada puramente em lucro.

O uso no sentido social da tecnologia a partir de uma cooperação tecno-cientifica implicaria num sistema de valores amparados na soberania de consciência, no conhecimento e nas projeções tecnológicas rumando ao objetivo de emancipação. Dessa forma, Abdias vê na autonomia tecnológica não somente a fundação de justiça social e respeito à dignidade humana, mas também um requisito para o progresso econômico internacional da humanidade e da soberania dos povos.

O primeiro ponto que chama atenção é o estímulo à investigação científica, mais do que nunca estamos vendo e vivendo o quanto a ciência é importante em momentos decisivos, como uma pandemia mundial. E isso não é somente sobre as chamadas “ciências duras”, mas, assim como Abdias, todas as maneiras de pensar, teorizar, discutir, desenvolver e executar soluções a partir de uma interdisciplinaridade que dê conta deste contexto complexo.

Falei sobre os meus benefícios individuais em que a tecnologia foi minha aliada para provocar principalmente a respeito dessa tal liberdade tecnológica. Hoje, 47 anos depois do discurso de Abdias, estamos num patamar bastante preocupante quanto a interferência das tecnologias e dos conglomerados em assuntos que são da ordem pública e social.

Há de fato sistemas de opressão amparados em tecnologia operando na sociedade. Talvez nem todos sejam novos sistemas de opressão, mas são sistemas intensificados com a tecnologia, por exemplo: desinformação, discurso de ódio, discriminação algorítmica, vazamento de dados, manipulação e clonagem de informações, entre outros. Como afirma Ruha Benjamin a tecnologia é um dos muitos meios pelos quais as formas anteriores de desigualdade são atualizadas.

Vamos falar um pouco dessas questões e seus impactos por aqui, mas também falaremos das contra-narrativas possíveis e caminhos rumo a essa emancipação da qual já era necessária em 1974 e hoje se faz urgente. Pois assim como Abdias Nascimento, eu também “acredito na pedagogia que liberta a tecnologia de sua atual tendência de escravizar o ser humano”.