Em decorrência do distanciamento social imposto pela pandemia do novo coronavírus, 2020 foi o ano das lives. A ferramenta se tornou uma grande aliada da divulgação científica, popularização de debates e expansão de alcance territorial. Algumas dessas lives foram verdadeiras aulas e vou listar aqui as lives sobre relações étnico-raciais que merecem ser revistas.
1: Ciclo de debates “Racismo e Antirracismo na atualidade”
Mulheres Negras, Racismo e Antirracismo com as Professoras Flávia Rios (UFF) e Bianca Santana (Uneafro e Coalizão Negra por Direitos) e Regimeire Maciel (UFABC);
Códigos, Programação e Antirracismo com Carla Vieira (USP e perifaCode), Andreza Rocha (Afroya Tech Hub e BrazilJS) e Tarcízio Silva (UFABC).
2: Nas #JornadasAntirracistas da Companhia das Letras a live Feminismos negros, com Sueli Carneiro, Bianca Santana, Djamila Ribeiro e Flávia Oliveira
3: Nas #JornadasAntirracistas da Companhia das Letras a live Racismo estrutural e institucional com Cida Bento, Silvio Almeida, Jurema Werneck e Ronilso Pacheco
4: A live de abertura do Semestre Letivo Suplementar dos programas de pós-graduação Pós-Cultura (IHAC/UFBA) e Pós-História Profissional (CAHL/UFRB) com Ailton Krenak e Mateus Aleluia.
5: Audino Vilão e Emicida conversando sobre Filosofias das ruas
6: André Brock na live On Race and Technoculture do Data & Society Research Institute
7: Live da ABPN (Associação Brasileira de Pesquisadores Negros) sobre Intelectualidade Negra e Antirracista & NEAB(I)s.
8: Live Tecnologia, Raça e Gênero do Núcleo de Solidariedade Tecnica – SOLTEC/UFRJ com Tarcízio Silva e Sil Bahia.
9: Lançamento do livro A razão Africana com Muryatan S. Barbosa, Acácio Almeida e Flávia Rios.
10: Aula aberta na Casa 1 sobre Racismo e Algoritmos com Nina da Hora
Li o artigo recentemente, por indicação da colega Juliana Serzedello Crespim Lopes, e vou compartilhar uma breve resenha e comentários sobre o texto que, para mim, apresenta uma antecipada e provocativa reflexão ao caos que vivenciamos atualmente.
Civilizacionismo, a “alt-right” e o futuro da política antirracista: um informe da Grã-Bretanha
O artigo se propõe a discutir a ascensão da “direita alternativa” ou “alt-right”, termo elaborado por seu próprios praticantes, a partir de uma análise sobre como as tecnologias reformularam o fascismo e o racismo, sobretudo em relação às estruturas políticas de comunicação baseadas em algoritmos e propagação de fake news. Para o autor, a revolução tecnológica oferece um novo significado para a política e parapolítica o que exige novas formas de se relacionar entre partidos, movimentos e mobilizações.
Gilroy inicia relembrando a virada discursiva da questão racial de biológica para cultural, sobretudo quando este modo de análise tornou-se suporte estratégico para grupos ultranacionalistas e neofascistas. Aqui no Brasil, especificamente, podemos falar do movimento eugenista em que pessoas consideradas da “elite intelectual” acreditavam por uma suposta ciência em uma “nação do futuro” onde não-brancos eram excluídos por não terem determinadas “qualidades”. Dentre essa “elite intelectual” estavam nomes como Monteiro Lobato e o proprietário do jornal O Estado de SP, Julio de Mesquita. Na fronteira do contemporâneo, discutir essas questões, para o autor, representa sintomas da morte da esquerda organizada. É preciso encontrar abordagens capazes de repensar o global e o local sem recorrer a concepções deterministas entre gênero, raça, sexualidade e classe.
Por um lado há quem afirme categoricamente que racismo não existe, por outro, como afirma Gilroy, nossa relação com o racismo e hierarquias raciais foi alterada diante da economia da atenção. Há, portanto, novos problemas, como o “juri da internet”; disseminação de comentários racistas; o anonimato que desvela a pior essência do ser humano; e o que o autor chama de crowdsourcing multinacional da supremacia branca. Para o autor, algumas dessas forças racistas e fascistas contam com o reforço de trolls russas, inteligência artificial e robôs que agem sem uma jurisprudência e legislação.
Dessa forma, a mediação computacional foi o grande motivo da repaginação do fascismo genérico, segundo Gilroy. Para o autor essa repaginação é responsável por um postura em que os neorreacionários e os antigos neonazistas, os supremacistas brancos e os antissemitas agora não se veem mais como o mal radical, mas como se suas ideias fossem realmente ousadas, transgressoras, cômicas, irônicas e futuristas. E além do absurdo de acreditarem nesses fatores como elementos positivos, isso tudo ocorre com o amparo do argumento da liberdade de expressão.
O agrupamento é tecnologicamente sofisticado e tem um domínio desconcertante de comunicação política e psicológica, por meio dos aspectos libidinais e afetivos das novas tecnologia, em geral, e das mídias sociais, em particular. (p. 22)
Para o autor esse agrupamento tem alcance não somente pela distribuição de informações, mas também pela conquista e monopolização da atenção. O que ele chama de “economia da atenção” caracterizada por declarações chocantes, provocativas que tornam irrelevantes o conteúdo que seria realmente o foco. A título de exemplo, basta nos recordar da coletiva sobre a demissão de Sérgio Moro no qual o senhor eleito presidente explanou por 40 minutos absurdos aleatórios e por três minutos o comunicado oficial.
Ao apresentar essas questões, Paul Gilroy indaga: como a sociedade, principalmente os acadêmicos e atores políticos vão avaliar e comunicar suas ponderações; como ir além de análises que tomam somente o ambiente online como campo de estudo; compreender o papel da ética-política; e entender e principalmente agir em relação as novas ecologias midiáticas contemporâneas. Para tanto, o autor afirma de forma enfática: a batalha contra o racismo na ética, na epistemologia e na ontologia política é de preocupação fundamental. (p. 32). Sugere, portanto, que não haverá solução efetiva se esta não passar por profundas e constantes reflexões em torno das questões raciais.
O autor clama por um luta antirracista que ressurja e molde um humanismo cauteloso e pós-humanista que seja capaz também de compreender as relações multi-espécies entre humano e não-humanos.
Assim, no espírito do necessário reencantamento do humanismo, vamos buscar uma perspectiva diferente sobre as provações da cultura e da civilização do que as perspectivas atualmente fornecidas a nós por Farage, Wilders, LePen, Petry, Bol*onar*, Halla-aho, Pegida e sua laia. Nós temos que ser fortes o suficiente agora para perguntar o que a aceitação de seus racismos revela sobre até que ponto nossa própria civilização comum tem sido capaz de se sustentar e manter. Se fugirmos dessa obrigação, seremos condenados a uma escolha vazia entre diferentes variedades de barbárie. (p. 33)
O texto, apesar de relativamente curto, aborda outras questões que podem ser aprofundadas por diversas perspectivas. Deixo alguns tópicos para ilustração:
Como indicação extra, Paul Gilroy sugere a leitura dos livros do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han;
Paul faz uma critica certeira sobre como a racialidade comunicativa está comprimida no espaço mínimo de hashtags, tweets, memes, likes e follows;
Há também uma crítica sobre a “gestão da diversidade” adotada por grandes corporações. Para o autor isso representa uma face da revolução neoliberal que impacta diretamente na luta antirracista em conflito com uma suposta negritude neoliberal;
Dentre outros temas, Gilroy fala do uso abusivo de remédios antidepressivos e ação de uma teologia neoliberal que oferece falsas esperanças.