Sobre a pedagogia que liberta a tecnologia

Publicado primeiramente em Bitniks.

A primeira vez que tive contato com um computador foi em 1998, eu tinha oito anos. Meu irmão, sete anos mais velho, sempre foi entusiasmado com tecnologia. Estudava, montava e desmontava eletrônicos em casa, fazia diversos cursos, me ensinou datilografia numa arcaica máquina de escrever antes de ganharmos, da ex-patroa da minha mãe, o nosso tão sonhado Compaq Presario branco, tela de tubo, mouse de bolinha com fio e uma CPU imensa e barulhenta.

Meu irmão ia para a escola e dizia “pode usar o computador, só não formata ele” e aos oito anos meu passatempo era brincar no Paint, descobrir para que servia todos os Fn’s do teclado, conversar com o clipe do Word e fazer capas coloridas no WordArt. Anos depois meu irmão passou a trabalhar numa papelaria e então ele conseguia CDs da America Online mais baratos e assim tive minha iniciação à internet, mesmo que discada, depois da meia ou fim de semana até seis da manhã de segunda-feira. 

Sempre nerd, passava horas jogando no site Fliperama do IG, treinando testes de lógica e às vezes tentando decorar meu número de ICQ. Durante os três anos do ensino médio o meu cursinho foi o site Vestibular 1 que traz, ainda hoje, vários conteúdos e roteiros de estudo para processos seletivos. Eu passei a maioria destes três anos certa que ia prestar para Psicologia, mas, no último ano, depois de uma palestra sobre marketing e de pesquisar mais sobre a área da comunicação decidi por cursar Relações Públicas.

Ainda na faculdade, em 2009, criei junto com um amigo um blog sobre Relações Públicas. Esse projeto durou dez anos e foi uma sala de aula a parte para a minha formação. Por meio desse blog conheci pessoas que eu admirava de longe, fui a eventos, viagens e congressos. Ganhamos reconhecimento, demos palestras, nos envolvíamos em discussões políticas em relação à categoria. Foram excelentes 10 anos.

Essa constante aproximação com internet e tecnologia me motivou a atuar profissionalmente com comunicação digital. Mais tarde me tornei Mestre em Ciências Humanas e Sociais pesquisando as relações e aspectos sociais de afroempreendedores a partir das mídias sociais. E atualmente, no doutorado, estudo o impacto da desinformação e do discurso de ódio em comunidades racializadas.

Bom, toda essa história é importante para pontuar o quanto a tecnologia pode ser benéfica do ponto de vista individual. Para mim foi. Eu desenvolvi minha intelectualidade, aprendi, conheci pessoas e descobri meu campo de atuação a partir das minhas experiências individuais. Mas nós não podemos nos distanciar da análise crítica da tecnologia do ponto de vista coletivo e social.

Obra Onipresente e Imortal N. 4 – Adinkra Asante | Abdias Nascimento

Para tanto, gostaria de abrir os caminhos desta coluna com uma reflexão a partir de Abdias Nascimento (1914-2011). Abdias foi uma pessoa extremamente interdisciplinar, o que é muito importante em contextos complexos. Era poeta, dramaturgo, artista plástico, ativista pan-africanista, fundou o Teatro Experimental do Negro e o Museu de Arte Negra. Além disso Abdias foi Professor Emérito da Universidade do Estado de Nova York, deputado federal, senador da República e secretário do Governo do Estado do Rio de Janeiro.

Formou-se em Economia na Universidade do Rio de Janeiro, pós-graduado no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e em Estudos do Mar no Instituto de Oceanografia. Além da formação, Abdias Nascimento também coleciona títulos de Doutor Honoris Causa de instituições de ensino como a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, da Universidade Federal da Bahia, da Universidade de Brasília, da Universidade do Estado da Bahia e da Universidade Obafemi Awolowo em Ilé-Ifé, da Nigéria.

Abdias definitivamente é um dos maiores e mais importantes pensadores do Brasil e parte de sua história pode ser lida aqui, mas gostaria de compartilhar um trecho específico do livro O Quilombismo cujo título é “A respeito da Ciência e da Tecnologia” em um discurso proferido por Abdias Nascimento no VI Congresso Pan-Africano, em junho de 1974.

Ele fala a partir de um contexto pan-africano e há 47 anos atrás, mas acredito que podemos, no nosso contexto, nos beneficiar de suas reflexões. Abdias inicia encorajando a investigação e a apropriação independente da ciência e tecnologia para o desenvolvimento das nações e em benefício do ambiente e da realidade humana. Ressalta isso sobretudo ao criticar os grandes monopólios que “vendem” uma suposta liberdade tecnológica ou uma liberdade a partir do uso das tecnologias. Para Nascimento, esta dependência científica e tecnológica equivale à criação de sistemas de opressão pois, em seu modelo neocolonial, está baseada puramente em lucro.

O uso no sentido social da tecnologia a partir de uma cooperação tecno-cientifica implicaria num sistema de valores amparados na soberania de consciência, no conhecimento e nas projeções tecnológicas rumando ao objetivo de emancipação. Dessa forma, Abdias vê na autonomia tecnológica não somente a fundação de justiça social e respeito à dignidade humana, mas também um requisito para o progresso econômico internacional da humanidade e da soberania dos povos.

O primeiro ponto que chama atenção é o estímulo à investigação científica, mais do que nunca estamos vendo e vivendo o quanto a ciência é importante em momentos decisivos, como uma pandemia mundial. E isso não é somente sobre as chamadas “ciências duras”, mas, assim como Abdias, todas as maneiras de pensar, teorizar, discutir, desenvolver e executar soluções a partir de uma interdisciplinaridade que dê conta deste contexto complexo.

Falei sobre os meus benefícios individuais em que a tecnologia foi minha aliada para provocar principalmente a respeito dessa tal liberdade tecnológica. Hoje, 47 anos depois do discurso de Abdias, estamos num patamar bastante preocupante quanto a interferência das tecnologias e dos conglomerados em assuntos que são da ordem pública e social.

Há de fato sistemas de opressão amparados em tecnologia operando na sociedade. Talvez nem todos sejam novos sistemas de opressão, mas são sistemas intensificados com a tecnologia, por exemplo: desinformação, discurso de ódio, discriminação algorítmica, vazamento de dados, manipulação e clonagem de informações, entre outros. Como afirma Ruha Benjamin a tecnologia é um dos muitos meios pelos quais as formas anteriores de desigualdade são atualizadas.

Vamos falar um pouco dessas questões e seus impactos por aqui, mas também falaremos das contra-narrativas possíveis e caminhos rumo a essa emancipação da qual já era necessária em 1974 e hoje se faz urgente. Pois assim como Abdias Nascimento, eu também “acredito na pedagogia que liberta a tecnologia de sua atual tendência de escravizar o ser humano”.

Blackout – Mapa das Startups Negras

Saiu a Blackout – Mapa das Startups Negras, uma realização da BlackRocks e que tive a honra de analisar os dados como pesquisadora convidada. O estudo traz um panorama do perfil do/a fundador/a, da startup, envolvimento com a agenda ESG, diversidade e empregabilidade.

O objetivo é oferecer dados e análises que possam colaborar com o desenvolvimento do setor de inovação e tecnologia no Brasil e que seja um apoio para a reflexão e propostas de soluções para as disparidades existentes no ecossistema.

Acesse o mapa aqui.

10 artigos sobre raça, comunicação, tecnologia e política

Apesar das incertezas de 2020, a publicação de artigos científicos foi uma das poucas instituições funcionando corretamente, rs. Segue abaixo uma lista com 10 artigos sobre raça, comunicação, tecnologia e política.

1: Visão computacional e racismo algorítmico: branquitude e opacidade no aprendizado de máquina de Tarcízio Silva.

2: Geopolitics of Power and Knowledge in the COVID-19 Pandemic: Decolonial Reflections on a Global Crisis de Sabelo J. Ndlovu-Gatsheni.

3: Raça e Racismo nos estudos em Economia Política da Comunicação: da resistência à construção de uma agenda de pesquisa de Ivonete Silva Lopes e Paulo Victor Melo.

4: Elites tecnológicas, meritocracia e mitos pós raciais no Vale do Silício uma tradução de Safiya Umoja Noble e Sarah T. Roberts.

5: From Rationality to Relationality: Ubuntu as an Ethical and Human Rights Framework for Artificial Intelligence Governance de Sabelo Mhlambi.

6: O velho Cadillac: raça, nação e supremacia branca na era Trump do Professor Flávio Thales Ribeiro Francisco.

7: O racial é propriamente comunicacional de Pâmela Guimarães-Silva.

8: As funções sociais do espaço de ensino para estudantes negros bolsistas em escolas particulares: uma análise de Malhação: Viva a diferença de Olívia Pilar.

9: Gênero e raça na comunicação de marcas: A dimensão política do consumo sob uma perspectiva interseccional de Pablo Moreno Fernandes Viana e Dalila Maria Musa Belmiro.

10: Nós, as economistas políticas da comunicação – um conto de sub-representações e apagamentos em busca de um final feliz no reino encantado da EPC brasileira de Sil Bahia, Marcia M. S. Gonçalves, Janaine Aires, Chalini Barros, Suzy dos Santos e Luanda Schramm.


Extra: Negras in tech: apropriação de tecnologias por mulheres negras como estratégias de resistência de Dulcilei Lima e Taís Oliveira.

Cadernos Pagu publica Dossiê Tecnopolíticas de Gênero

A Revista Cadernos Pagu é parte das iniciativas de disseminação de conhecimento do Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu da Universidade Estadual de Campinas. A publicação é quadrimestral interdisciplinar e tem como objetivo contribuir para a ampliação e o fortalecimento de estudos de gênero, sobretudo a produção realizada no Brasil com o intercâmbio de conhecimento internacional sobre a problemática.

A Edição 59 da Revista Cadernos Pagu traz o Dossiê Tecnopolíticas de Gênero com artigos com temáticas variadas a partir da discussão tecnológica e de diversas pesquisadoras do país. Dentre as publicações há, por exemplo, o artigo Tecnologias, infraestruturas e redes feministas: potências no processo de ruptura com o legado colonial e androcêntrico de Débora Prado de Oliveira, Daniela Camila de Araújo e Marta Mourão Kanashiro, Digitalizando o cuidado: mulheres e novas codificações para a ética hacker de Graciela Natansohn e Josemira Reis e Corpos transmasculinos, hormônios e técnicas: reflexões sobre materialidades possíveis de Érica Renata de Souza.

Dulci Lima e eu escrevemos o artigo Negras in tech: apropriação de tecnologias por mulheres negras como estratégias de resistência, que teve como objetivo analisar o levantamento da PretaLab sobre a inserção de mulheres negras e indígenas nas TICs. Além disso, aplicamos, a partir dos 15 projetos mencionados pelas entrevistadas, a Análise de Redes Sociais na Internet (ARS). Vimos que as mulheres negras buscam dominar as tecnologias, a fim de propor soluções para as brechas tecnológicas e fazer uso social das habilidades adquiridas.

Clique aqui para acessar o artigo

e aqui para ver o dossiê.

Artigo: #quemmandoumatarmarielle: a mobilização online um ano após o assassinato de Marielle Franco

Acaba de ser publicado na Revista Líbero o artigo #quemmandoumatarmarielle: a mobilização online um ano após o assassinato de Marielle Franco em co-autoria entre Taís Oliveira, Dulcilei Lima e o Professor Dr. Claudio Penteado.

O artigo apresenta o resultado do mapeamento de conversas e grupos no marco de um ano do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, ocorrido em 14 de março de 2018. A metodologia utilizada foi a Análise de Redes Sociais na Internet a partir de publicações no Twitter com as hashtags #QuemMatouMarielle, #QuemMandouMatarMarielle, #MariellePresente, #MarielleFrancoVive e #MarielleVive.

Buscamos compreender quais as pautas levantadas pelos usuários e que grupos são identificados a partir da clusterização da rede. Quando Marielle foi morta, essas hashtags reuniram discussões, manifestações de condolência, cobrança por justiça e o assunto chegou a ocupar a primeira posição no Trending Topics Mundial do Twitter no dia 15 de março de 2018. Dias antes do marco de um ano da morte da vereadora surgiram nas redes sociais as primeiras mobilizações com a convocação de atos, homenagens, filtros nas fotos de perfil no Facebook, ações que cresceram com a notícia das prisões de dois suspeitos. Observamos nesse contexto a estrutura e os atributos relacionais de tais manifestações.

Obtivemos como principais resultados uma rede extensa, descentralizada, com nós unilaterais e diversos clusters. Embora com nós pouco conectados, as conversas na rede se deram sob as mesmas pautas baseadas em uma única questão: quem mandou matar Marielle?

Acesse o artigo completo aqui.