Mídias sociais e Filosofia – análise do documentário Catfish

Nos últimos meses do ano passado fiz um curso de extensão com uma proposta bastante interessante que une filosofia e novas tecnologias –  “A (des)construção da subjetividade nas mídias sociais” que tinha como base bibliográfica Michel Foucalt, com uma ênfase maior no que se refere aos conceitos de sujeito e subjetivação. Trata-se de pensar como as pessoas criam/recriam/determinam suas verdades na sociedade por meio do discurso, nesse curso o foco de análise foram as mídias sociais.

Para concluir o processo de pensar sobre o ambiente digital com base na filosofia fomos convidadas (pois só tinham mulheres na turma) a elaborar algum texto, análise, pesquisa ou qualquer outra coisa relacionada ao conteúdo ministrado em sala de aula. Pois bem, eu então, decidi analisar o documentário Catfish que conta a história de Nev Schulman e uma amizade virtual desenvolvida através da rede social Facebook, a ideia é tentar entender ou ao menos questionar como as ações online afetaram a vida dos envolvidos e ainda traçar um paralelo do comportamento atual nas mídias sociais.

O documentário fala da história decepcionante de Nev Schulman, 24 anos de idade – a personagem principal, com direção dos cineastas Ariel Schulman (irmão de Nev) e Henry Joost. Os três dividiam um escritório na cidade de Nova York, Nev é fotografo e os dois amigos trabalham com cinema. Quando uma amizade virtual, até então inocente, entre Nev e uma garota pintora chama atenção dos amigos cineastas que decidem acompanhar a trama com uma câmera nas mãos.

O documentário Catfish data do ano de 2007, a princípio sua produção se basearia na amizade de Nev e Abby Pierce, 08 anos, uma notável criança pintora do Estado de Michigan / EUA. Tudo começou quando Nev recebeu de Angêla, mãe de Abby, um quadro que a garota supostamente teria feito inspirado numa fotografia de autoria de Nev. Com o decorrer das semanas Nev recebia mais e mais quadros pintados por Abby, a partir de então e cada vez mais o relacionamento deles fica intenso, através de e-mails, novos postais e telefonemas. Mas não apenas entre Nev e Abby, agora toda família integrou-se na amizade, a mãe Angela, o pai Vince e a irmã mais velha de Abby Megan Faccio, 19 anos, da qual Nev se apaixonara.

Nev e Megan iniciam  um flerte virtual e a distância, conversam sobre tudo, falam-se todos os dias, fazem confidências, trocam mensagens intimas e assim por diante.  Quando em um determinado momento Megan envia uma gravação musical para Nev alegando ser de sua autoria, Nev encantado pelo teor profissional da música procura em um site de busca pelo título da obra e encontra a versão original e que não pertencia à Megan. A partir daí Nev e seus amigos investigam a vida da jovem e de sua família em busca de novas contradições, que eram muitas. Os três foram a trabalho em um evento nas proximidades de Michigan e decidiram fazer uma visita surpresa e tentar compreender quais mistérios existiam naquela aparente amorosa família.

Catfish é uma gíria americana que significa “pessoas que foram enganadas por outras na internet”, o enredo já se mostra óbvio desde o início, mas o suspense agora é saber qual é a verdadeira história que pertence à família e por qual razão há tanta mentira no que se refere às personagens envolvidas. No fim das contas Angêla era a talentosa pintora que se apaixonara por Nev e assinava como Abby, esta era realmente sua filha de 08 anos, mas Megan era fantasia.  Vince, seu marido, existia, porém para ele a relação de Angêla e Nev era estritamente comercial a respeito dos quadros, para ele os quadros encaminhados para Nev eram vendas realizadas. Vince tem dois filhos gêmeos de outro casamento com deficiência física e mental, segundo Angêla ela se abdicou, como prova de amor, dos sonhos de sua vida para dedicar-se à nova família.

Durante a visita de Nev e seus amigos, Angêla acabou por confessar a farsa. Contou que criou 15 perfis no Facebook e elaborou um contexto para seus personagens (Megan, Vince, Abb, seus filhos, e alguns amigos dos filhos) e enganar Nev. Segundo ela todos tinham traços de sua própria personalidade, faziam coisas das quais ela gostava de fazer na juventude, além de “perfeitos” fisicamente todas as personagens demonstravam muita alegria e felicidade, com fotos copiadas que sempre mostravam festas, passeios divertidos, alegrias e poses bem elaboradas.

catfish-mtv

Do documentário sobre a história de Nev a MTV americana criou a série de mesmo nome que conta histórias semelhantes de pessoas que se apaixonaram por meio de um relacionamento virtual, mas desconfiaram em algum momento da veracidade dos fatos. O próprio Nev e o cineasta Max Joseph são os apresentadores e “detetives” da série, responsáveis por desvendar as possíveis mentiras e reconciliar os envolvidos.

A partir daí é possível encontrar pontos de partidas para alguns questionamentos. Angela elabora 15 personagens diferentes para encobrir a mentira sobre sua vida, a pergunta que se faz necessária é: por que criar personagens com detalhes tão “perfeitos” ao invés de assumir suas próprias características para impressionar ou estabelecer um relacionamento com alguém? Seria medo de estar fora dos padrões de beleza e comportamento impostos na sociedade do espetáculo? Seria uma resposta inconsciente do que ela gostaria de ter sido? Seria uma maneira de expor a frustração em relação à sua vida real?

No que se refere ao romantismo inerente na história é possível dividi-la em dois pontos: a perfeição física e a personalidade da personagem Megan. Como a própria Angêla afirma muito de sua personalidade estava em suas personagens, talvez nesse aspecto existia uma verdade compatível com a realidade,  Nev talvez tenha se apaixonado pela personalidade de Angêla, mas fora ludibriado pela imagem que não correspondia à realidade.

Ao questionar sobre o uso da plataforma virtual como meio de estabelecer um relacionamento mais profundo e sustentar a farsa pode-se afirmar que esta facilita a personificação de personagens ou fragmentos do que o usuário poderia ou gostaria de ser? A plataforma virtual seria um escudo de proteção para a mentira ou para falta de coragem de ser quem realmente somos? Ou ainda um escudo para “viver” uma vida que não conseguimos obter? Até que ponto mentir sobre nossa personalidade para enquadrar-se em padrões pode afetar a história de nossas vidas?

Durante a revelação dos fatos no documentário percebe-se que Angêla fica realmente emocionada ao contar a verdade sobre os perfis e as razões que a motivaram para tal. Nota-se que a motivação não foi em detrimento da maldade, de vingança ou intenção premeditada de mentir, talvez houvesse uma razão despretensiosa de mentir pontualmente, mas a cadência histórica da relação que a cada dia tornou-se mais intensa a fez continuar com a vida de mentira. Não se tem o registro de Angêla manifestando sua intenção de contar a verdade, mas ela afirma ter consciência de que sua atitude não fora certa.

Enfim, o curso teve duração de três meses totalmente focados no comportamento dos usuários nas mídias sociais com base em filosofia, digamos que foi apenas um empurrãozinho para uma pesquisa maior. A ideia é aprofundar nesses insights tão humanos das novas tecnologias de comunicação. Sobre a pergunta do título: sim, mídias sociais e filosofia combinam muito

* Artigo publicado no Versátil RP em janeiro de 2014

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