Entender a história, refletir no presente e planejar o futuro

Para contextualizar, a nossa primeira pauta com foco em diversidade foi a série EnegreceR[P]que aconteceu durante o novembro negro de 2015. Nesta ação, convidamos vários profissionais e estudantes negros das relações públicas para contar suas experiências, inquietações, questionamentos, trajetórias, desejos e anseios em relação ao ambiente acadêmico e ao mercado de trabalho.

Bom, vamos ao tema proposto para debate no Encontro Regional de Estudantes de Relações Públicas – 2016: Diversidade nas Organizações. A diversidade é um conceito possível de abordar a partir de múltiplos ângulos. Desde a dimensão cultural, religiosa, regional, de grupos específicos, de opiniões e assim por diante. Como dizem “vamos começar do começo”. O primeiro passo é definir o conceito de diversidade que, segundo o Dicionário Michaelis, trata-se da 1 Qualidade daquele ou daquilo que é diverso. 2 Diferença, dessemelhança: Diversidade de interpretações. 3 Variedade: Diversidade de dons.

A partir disso, vale perguntar: por que quem é considerado pertencente a um grupo de diversidade é diversidade? Por que é “diferente” e quem determinou o que é “normal”? Estando aí a diversidade, cabe a nós pensar a respeito e compreendê-la pressupõe observar, interpretar e respeitar as concepções de mundo e as vivências dos tantos grupos que compõem a sociedade. Grupos que se posicionam a partir dos hábitos adquiridos em sua cultura. Para Clifford Geertz (1989), o conceito de cultura é:

[…] essencialmente semiótico. Acreditando […] que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado. É justamente uma explicação que eu procuro, ao construir expressões sociais enigmáticas na sua superfície.”

Para o autor, o comportamento humano é uma ação simbólica e a cultura é uma estrutura de significados estabelecidos que existem no contexto da sociedade (dentro). Para entender comportamentos Geertz afirma que é preciso “estudar NA aldeia e não SOBRE a aldeia; criar COM eles e não SOBRE eles”, ou seja, compreender o comportamento de um determinado grupo exige uma dedicação densa baseada em muita conversa (escuta) e observação. Segundo ele, “a humanidade é tão variada em sua essência como em sua expressão” e não existe uma fórmula ou regra geral para determinar verdades sobre o comportamento humano.

Cada vez mais dominar as nuances culturais tem sido um fator determinante para profissionais de várias áreas, aqui, mais especificamente, para os de comunicação. Não reduzido apenas ao ponto de vista mercantil, mas também (e, principalmente, a meu ver) do ponto de vista da necessidade de se estabelecer o diálogo e o respeito para uma harmonia social. Um dos nossos papéis enquanto profissionais é esse, já diz aquela clássica citação: “toda profissão tem um propósito moral. A Medicina tem a saúde. O Direito tem a justiça. Relações Públicas tem a harmonia – harmonia social.” (Seib e Fitzpatrick, Public Relations ethics, 1995).

A partir da ideia de uma variedade e da ausência de uma fórmula única é importante um olhar delimitado quando se trata de diversidade, então, creio que para entender o nosso próprio contexto é necessário entender a nossa trajetória histórica. O que é bastante complexo, não por acaso, pesquisadores dedicam a vida a estudar a sociedade brasileira. Destaco dois pontos específicos que foram (e ainda são) determinantes para a conjuntura atual: a pluralidade étnico-racial e as relações de poder político e econômico na história do Brasil.

Tratando-se do primeiro aspecto, sabemos que o país é formado por três principais raízes étnicas – os índios (que cá estavam), os portugueses (que invadiram) e os africanos (que foram sequestrados e escravizados). No decorrer do período imperial vieram outros povos como os alemães, italianos e japoneses. Todos com sua gama de culturas, costumes, religiões e tradições. Quanto às relações de poder político-econômico, os rumos da condução coletiva (que nem sempre foram tomados pensando no coletivo, de fato) sempre dependeram de alguém (ou de um grupo) dominante com base, muitas vezes, em interesses próprios. Daí a escolha de quem define as regras, quem manda e quem obedece, quem é subalterno e quem é elite e assim por diante.

Ao fazer um recorte de grupos que hoje consideramos diversidade (ou “minoria”), podemos citar os afrodescendentes, mulheres, mulheres negras, pessoas de baixa renda ou na linha de pobreza e pessoas lgbtt (sim, sei que há muitos outros grupos). A gente cai, invariavelmente, em alguma coerção étnico-racial (com sua variedade de culturas, costumes, religiões e tradições) ou de relação de poder (política e econômica). Vamos pensar nisso em forma de perguntas: por que as mulheres foram vistas como mais fracas, incapazes, a do lar, a mãe ou a serviçal? Por que os negros foram taxados como uma raça inferior? Por que a população pobre, em sua maioria, vive nas periferias das grandes cidades? Por que as variadas relações afetivas fora da heteronormatividade são consideradas como algo errado ou impuro? Por que as mulheres negras são vistas como atrativo sexual para gringos? Quem determinou essas características e por que elas ainda são utilizadas para orientar as relações contemporâneas?

Todas essas perguntas são respondidas observando a trajetória das relações entre os pontos levantados acima. O que temos em expansão hoje, e isso agradecemos à evolução, sobretudo, ao que se refere à tecnologia da comunicação, são pessoas que questionam o status quo, movidas por uma análise lógica que não aceitam os maus hábitos que inviabilizam o desenvolvimento humano e as liberdades individuais.

Especificando ainda mais, falo a partir da minha vivência enquanto mulher negra periférica e volto para explicar as aspas que empreguei em “minorias” mais acima. Quando se fala da população negra do Brasil, “minorias” não é utilizado no sentido estatístico, pois compomos mais da metade da população: 53% dos brasileiros se declararam pardos ou negros segundo dados do IBGE de 2014, ou seja, neste solo somos maioria. Ainda assim estamos entre os piores índices de desenvolvimento humano do país e essa é uma afirmativa baseada nos dados encontrados no documento Situação Social da População Negra por Estado (2014) da Seppir (Secretaria de Política de Promoção da Igualdade Racial) em parceria com o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) que traz indicadores a partir da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios). Segundo o levantamento, temos a menor renda per capita, o menor índice de escolaridade e a maior taxa de desocupação (imagem), três fatores determinantes para o desenvolvimento humano. Como afirma Sueli Carneiro, “o acesso ao emprego e ao trabalho é condição primordial para a reprodução da vida, e sua exclusão é também a primeira forma de negação desse direito básico da cidadania.”.

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Em contrapartida, segundo a pesquisa Retrato dos Negros no Brasil organizada pela Rede Angola entre o ano 2000 e 2010 ocorreu um aumento de cerca de 230% de negros nas universidades, todavia, esse número representa muito pouco ao visualizar o todo. A cada 100 formandos, somente 3, ou 2,66%, são negros, pretos ou pardos. E, quando formados, o salário médio não é tratado em “pé de igualdade” para o mesmo posto em relação a não negros (texto extraído daqui). Nos últimos três anos, 150 mil negros ingressaram no ensino superior em instituições federais por meio de cotas e a Seppir tem uma projeção de 40 mil estudantes beneficiados em 2015 (dados oficiais ainda não divulgados).

Significa que a população negra está ocupando espaços que antes nos eram indeferidos e, por sua vez, raramente eram debatidos com o objetivo de uma real alteração no ambiente. Éramos estudados, porém não estudávamos. Agora com a maior inserção da população negra em locais de construção intelectual, de novos mercados, de poder e decisão, iniciamos uma gradual mudança (e talvez demorada) que vai impactar nos indicativos de emprego, renda, escolaridade e pobreza das novas gerações (dos nossos filhos e netos).

Embora com processo iniciado, temos que delimitar ainda mais esse grupo e pensar, por exemplo, em mulheres negras que são as mais prejudicadas em praticamente todos os indicativos de desenvolvimento social. O documento Dossiê Mulheres Negras – retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil (2013), uma parceria também da Seppir e Ipea, tem por objetivo analisar dados referentes às mulheres negras a partir de temas específicos como participação no mercado de trabalho, acesso a bens e exclusão digital, pobreza e desigualdade de renda, violência física e acesso ao ensino superior. Desse material, destaco três fatos apresentados no estudo: ensino superior, carteira assinada e rendimento.

A boa notícia é que, de maneira geral, há um maior grau de escolaridade entre os brasileiros e também entre a população negra (em grande parte, resultado da política de cotas), dos quais as mulheres negras possuem uma taxa maior que homens negros. No que diz respeito a trabalho com carteira assinada as mulheres negras ficam por últimos em relação a todos os grupos comparativos (homens não-negros, mulheres não-negras e homens negros), o que implica em problemas futuros por consequência da não formalização e insegurança, já que não são respaldadas pelas garantias estabelecidas nas leis trabalhistas. Quando o assunto é rendimentos novamente as mulheres negras são as últimas no comparativo do grupo, recebendo 73% dos ganhos do homem branco (o mais privilegiado entre os analisados).

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O que fica claro é que quando temos que pensar em diversidade nas organizações não podemos reduzir o debate apenas em determinar de forma mecânica uma meta de quantos funcionários vão compor o quadro da diversidade, mas se esforçar para compreender a razão de termos que elaborar políticas compensatórias e como nossas posições profissionais de estratégia, de formação de opinião e de tomada de decisão também são importantes para reverter quadros sociais. Além disso, debater, refletir e questionar são extremamente importantes, claro, porém não é um milagre comportamental que vai fazer com que as pessoas intolerantes repensem seus hábitos em relação aos grupos considerados como diversidade. É por meio de políticas públicas, como cotas raciais nas universidades federais, concursos públicos ou as propostas do Estatuto da Igualdade Racial “destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica”. Essas políticas devem receber o apoio estratégico de outras ferramentas, como educação, o debate e a comunicação em suas variáveis e seus agentes.

Comunicação: nela e a partir dela

No capítulo Uma visão crítica e abrangente das relações públicas do livro Relações Públicas: a construção da responsabilidade histórica e o resgate da memória institucional das organizações, o autor Paulo Nassar levanta a importância das relações públicas como mediadora de protagonistas sociais de dimensão cultural, tecnológica e econômica. Faz uma crítica ao início meramente interesseiro das RP e ressalta a importância de estabelecer relacionamentos éticos e transparentes numa sociedade que exige conhecimento e não mais apenas informações aleatórias.

Cândido Teobaldo de Souza Andrade em Psicosociologia das Relações Públicas afirma no capítulo Relações Públicas e sua responsabilidade que é preciso estabelecer um diálogo planificado e permanente tendo em vista o interesse social e acrescenta:

Relações Públicas fazem parte da educação e que a elas cabe o papel importante de esclarecer a todo cidadão sua participação nos problemas levantados na comunidade” […] Poucos são os que reconhecem que toda empresa tem uma função social, solidária com o poder público na formulação do desenvolvimento geral. […] Os homens por força da educação progressiva, adquirem novas expectativas, que não podem ser satisfeitas pelas tradições, herança social, normas e tudo o mais que atendeu às sociedades em tempos passados. Além disso, a não satisfação dessas expectativas pode gerar frustrações individuais e desiquilíbrio na sociedade. […] Cabe às Relações Públicas agir junto os centros decisórios das instituições, procurando estabelecer a harmonia entre o interesse público e o privado, contribuindo assim para amenizar as tensões resultantes das atitudes individuais.”

À luz desses comentários percebo que é interessante pensarmos em dois cenários da abordagem no campo das comunicações em relação a diversidade: nela – no sentido de pensar políticas que promovam igualdade de oportunidades para estudantes e profissionais pertencentes a grupos de “minorias”. Falo de práticas não necessariamente baseadas em leis, mas diversificar a oportunidade de fala e atuação, professores negros no quadro de docentes das universidades, profissionais negros com evidências em suas produções acadêmicas ou convidados para eventos de suas determinadas categorias, atenção às necessidades de jovens estudantes que necessitam de representatividade para seguir a trajetória de sua formação, intelectuais negros indicados em bases bibliográficas, entidades de classe se posicionando diante de uma necessidade de debater o mito da democracia racial (também no âmbito da comunicação) que já não cabe mais debaixo do tapete. No que se refere à concepção da abordagem a partir da comunicação – trata-se dos profissionais que já atuam no mercado ou academia também assumirem sua parcela de responsabilidade em construir uma sociedade mais igualitária, de não fazer vistas grossas diante de situações questionáveis, de não aprovar a peça de publicidade misógina, homofóbica, racista, etc. E essas demandas são de todos, não é pauta somente dos grupos de diversidade.

Por fim, havia uma proposta de levantamento para integrar esse material com o objetivo de saber quantas e quais das dez maiores agências de relações públicas originárias ou presentes no Brasil (segundo dados de 2015 do World PR Report do portal Holmes Report, pesquisa realizada com base em receita), das associações relacionadas e conselhos regulamentadores possui programa de diversidade para colaboradores ou alguma iniciativa com o objetivo de pensar a diversidade na comunicação. Dos 29 contatos realizados somente cinco retornaram, dos quais apenas dois apresentaram conteúdo que vale ser compartilhado. De um ponto de vista bastante pessimista, a falta desse feedback também reflete um indicativo. Sugere que poucos estão se dando ao trabalho de pensar além de uma rotina que lhe convém e eu espero, sinceramente, que esse cenário mude.

De qualquer forma, segundo o respondente da Associação Brasileira de Relações Públicas, seção São Paulo (ABRP-SP), “Nosso novo formulário de associados já prevê o campo “etnia” para levantarmos o perfil étnico-racial dos associados e pretendemos em nossa próxima assembleia geral dos sócios pautar temas sociais para intervenção profissional dos relações-públicas, convidando os associados a contribuir com alguma causa de forma voluntária e escolhida pelos sócios. Além disso, a composição atual da diretoria da ABRP-SP nesta gestão 2015/2017 é bastante diversa das demais entidades da área, com um presidente negro, uma diretora administrativa autodeclarada parda e mais de 60% mulheres. Também classificamos com diversidade a presença regional, com representantes do interior de São Paulo na diretoria.”.

Já a Associação Latino-Americana de Relações Públicas (ALARP-Brasil) afirma ter o “Programa ALARP-Brasil +gente que visa o fomento e o incentivo à participação de representantes das chamadas minorias nas decisões da ALARP-Brasil. Para tanto, criamos diretorias para assuntos LGBT, Afro-Brasileiros, Direitos Especiais, Mulher e Idosos.”.

A Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje), embora não tenha respondido a pesquisa, tem um comitê LGBT e um Laboratório de Narrativas de Gêneros. Segundo postagem em sua página, o espaço tem como objetivo debater as narrativas de gêneros e desconstruir os discursos de legitimação, indo além da forma binária masculino x feminino.”.

aberje

 

Outras iniciativas que valem ser citadas:

  • decreto da Secretaria de Comunicação do Governo Federal que diz “as ações publicitárias do Poder Executivo Federal, de que trata o inciso do art. 2º. do Decreto nº 3.296/99, deverão contemplar a diversidade racial brasileira sempre que houver o uso de imagens de pessoas”;
  • Lista com 15 empresas que possuem projetos de diversidade e inclusão;
  • Estudo sobre a diversidade sexual e de gênero nas organizações;
  • A iniciativa 65/10 que questiona a falta de mulheres nas áreas de criação das agências de publicidade (e, consequentemente, a publicidade machista);
  • Levantamento sobre a presença de negros nas agências de publicidade;
  • Esse debate super bacana sobre o tema ‘empatia’.

Para finalizar, volto a perguntar: por que quem é considerado pertencente a um grupo de diversidade é diversidade? Por que é “diferente” e quem determinou o que é “normal”? Estando aí a diversidade, também cabe a nós profissionais (estudantes, empresas, instituições de ensino, etc.) nos esforçar para oferecer soluções em que não tenhamos mais que fazer esse tipo de questionário.

* Material produzido para o MiniTalk sobre Diversidade nas Organizações no ERERP – 2016 e publicado no Versátil RP


BIBLIOGRAFIA / REFERÊNCIAS

ANDRADE, Cândido Teobaldo de Souza. Psicosociologia das Relações Públicas. Petrópolis: Vozes, 1975.

CARNEIRO, Sueli: Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil, São Paulo: Sele Negro, 2001.

GEERTZ, Clifford: A interpretação das culturas, Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1989.

NASSAR, Paulo: Relações Públicas: a construção da responsabilidade histórica e o resgate da memória institucional das organizações, São Paulo: Difusão, 2007.

Laboratório de Narrativa de Gêneros da Aberje.

Diversidade segundo Michaelis.

Global PR agency ranking via Holmes Report

Estatuto da Igualdade Racial

Pesquisa Retrato dos Negros no Brasil

Situação da população negra por estado

Matéria sobre o acesso da população negra ao ensino superior

Artigo ‘Igualdade Racial’ por Sueli Carneiro

Dossiê Mulheres Negras

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